Porque "dar uma tapa na cara da mãe" não é "passar por problemas familiares"

A cena significa movimento, o que, em geral, provoca o interesse do leitor. Lembre-se, por exemplo, da cena de abertura de Madame Bovary. Quando o romance começa,os alunos estão sentados, sonolentos, abrindo a boca, silenciosos. Aí entra o tutor conduzindo uma carteira e, ao lado, um rapaz, que chama a atenção até pelo boné exótico. O professor decide perguntar seu nome e ele, supertímido, solta um grunhido que nada quer dizer: - charlesbovarrrrrrrrrrrrry, e repete: Carlesbovarrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrry. O professor pede então que ele se levante. Na verdade, ele se levanta, e o chapéu exótico, ridículo, cai no chão e é chutado pelos colegas. Depois de todo esse embaraço volta a se sentar.

Neste momento, Flaubert apresenta o personagem, mostra como ele se comporta e deixa claro que tipo de personagem tratará no transcorrer do romance. Ou seja, é Charles Bovary, o futuro marido de Ema Bovary. E mostrará, ao invés de dizer, que se trata de um homem fraco, sem reações, que se deixa levar pelos outros. Basta pensar nisso para entender a diferença entre técnica e conteúdo.

Na época de Madame Bovary era comum se escrever assim: “Na cidade de Ruen vivia um médico tímido, fraco e trapalhão, tímido e incompetente chamado Charles Bovary. Ele estudou na escola X, onde era motivo de brincadeiras. Foi criado somente pela mãe, porque o pai morreu cedo.”



Raimundo Carrero, para Pernambuco


Texto disponível na íntegra em
http://www.suplementopernambuco.com.br/index.php?option=com_content&view=article&id=485%3Anao-se-acanhe-ficcao-e-lugar-para-conversa&catid=16%3Araimundo-carrero

Candidato vitalício ao Troféu Rodin





Quando nem precisa argumentar

Brilho lembrança de uma memória eterna

Caiu do ar? Destacou-se da terra? Não sei; sei que um vulto imenso, uma figura de mulher me apareceu então, fitando-me uns olhos rutilantes como o sol. Tudo nessa figura tinha a vastidão das formas selváticas, e tudo escapava à compreensão do olhar humano, porque os contornos perdiam-se no ambiente, e o que parecia espesso era muita vez diáfano. Estupefato, não disse nada, não cheguei sequer a soltar um grito; mas, ao cabo de algum tempo, que foi breve, perguntei quem era e como se chamava: curiosidade de delírio.

— Chama-me Natureza ou Pandora; sou tua mãe e tua inimiga.

Ao ouvir esta última palavra, recuei um pouco, tomado de susto. A figura soltou uma gargalhada, que produziu em torno de nós o efeito de um tufão; as plantas torceram-se e um longo gemido quebrou a mudez das coisas externas.

— Não te assustes - disse ela -, minha inimizade não mata; é sobretudo pela vida que se afirma. Vives: não quero outro flagelo.




- Machado de Assis

todos os eus, o eu


-  Na verdade, não sei como dizer isso, mas há uma contradição em termos em se dizer: “pensamento que se repete”. Ora, o pensamento não se repete; só se pensa a partir do impacto de uma coisa nova; desde que se repita, já não é mais pensamento. Então, na literatura é a mesma coisa. Uma literatura, quando ela é repetitiva... ela está indo no bolo, bolo daquilo que se pode jogar num grande baú de “é tudo literatura”. Mas, na verdade, não. A literatura tem que ter uma palavra singular, uma forma singular de ver o mundo. 

                                                                                           Lourival Holanda,
                                                                                           Revista Crispim

                                                   

Coisas da vida



Muitas vezes me pego, inclusive aqui nesta crônica preguiçosa, pensando nas coisas da vida. De como ela – angústia de quem escreve e fim de quem entende –, do alto de sua dupla personalidade, se revela tanto no girassol que rasga a calota polar, quanto nas penas do urubu, em cuja sombra aguarda o náufrago moribundo. E que guarda, no imprevisível, sua graça. Sei que na lista de pulhas, que essa ardilosa concubina universal me reserva todos os dias, um dos itens que mais me faz estrebuchar de agonia diz respeito aos chamados semi-conhecidos.
Pior do que tia-avó surda em bingo de natal. Mais chato que torcedor que assiste ao jogo, no bar, sem desligar o radinho. O semi-conhecido é aquela pessoa que você sabe quem é (independentemente de identificar pelo nome), sabe que ele também reconhece você; mas que nunca – nunca! – dividiram um aperreio ou trocaram meia ideia sequer. Nem anônimo, nem colega. Ele pode ser o amigo de um amigo ou a manicure que batia na sua casa para empurrar as novidades da Avon para sua mãe. Em geral, são as figurinhas que entopem as sugestões do Facebook e do Twitter: “Talvez você conheça”. Conheço, e faço questão de não adicionar.
O problema é que ainda não foi descoberta uma forma socialmente adequada para lidar com eles. Imagine que você está em um ônibus quase cheio – exceto pela cadeira justamente do seu lado – quando, na parada, sobe uma única criatura. Logo quem? Aquele bicho que o adicionou no MSN, só para pegar umas dicas sobre sua irmã e, desde que levou um fora dela (há uns três anos, talvez), fica boiando na inércia da lista de contatos.
De cara, o inconveniente: você já viu que ele entrou, ele também já viu você. Os dois fingem que não, claro. Você cola, imediatamente, o nariz na janela e espera, com o ouvido tinindo, até o momento de ele se aproximar (intervalo extremamente aflitivo, diga-se). Quando a pisada fica mais forte, você dá uma viradinha e segura um micro-segundo. O mundo para por um instante. A partir daí, tudo se dá muito rápido. Pode acontecer de o bonitão simular que só te avistou agora e esboçar um contato: acena com a cabeça ou solta um grunhido educado – para viking nenhum botar defeito – no lugar do “e aí, meu irmão?!”. Ou ambos. Se você tiver mais sorte, o caba nem fala, passa direto, e todos vivem felizes para sempre.
Agora, a hipótese mais hedionda se materializa justamente quando bate olho no olho: o cidadão abre um sorriso do tamanho do Império Romano (e tão verdadeiro quanto o loiro de Preta Gil) e senta bem do seu lado. Não tem mais jeito. Primeiro, não dá mais para fingir que não sabe quem é; segundo, está estabelecida a obrigação da conversa; terceiro, tirando sua irmã, você não sabe que porra de assunto interessa ao cara. Nem o mais eficaz anjo da guarda pode tirar você dessa. Depois que passam as perguntas fáceis (tudo bom? tá indo pra onde? qual é teu curso?), um silêncio mais constrangedor que dedo de proctologista vai ganhando corpo. Olhar para o chão nunca foi tão interessante. Nem sua parada, tão distante.
Mas pior mesmo do que semi-conhecido, somente dor de barriga longe de casa. O sofrimento gerado pela sensação de ter um gato enlouquecido arranhando por dentro, junto ao fato de você ser completamente incapaz de expulsá-lo, ao menos que esteja sentado no trono do seu próprio lar. O suor começa a empapar o pescoço, a palidez vai se estampando no rosto. E sempre chega um camarada prestativo para, de pronto, perguntar se está tudo bem. “Claro que sim”, responde-se, invariavelmente, com a cara de quem foi obrigado a mastigar uma catita.
É nessas horas que desejo ser a rainha da Inglaterra ou até mesmo a filha de uma dupla de cantores sertanejos (falo “dupla”, porque nunca sei qual é o pai). Já que, ao que parece, elas nunca tiveram que passar pela via crucis que é precisar se aliviar e não poder (ainda que uma delas curta certas atividades na região em questão, o “sentido da coisa”, por assim dizer, é inverso). Quando, enfim, o lance aperta – o estômago se retorce, vem a rajada de desespero – você precisa, a qualquer custo, segurar a onda lá embaixo. Até o ponto de achar que não vai conseguir. Aí, ninguém mais consegue disfarçar a angústia.
Na primeira oportunidade, reúno meus calafrios, saio correndo e entro no primeiro busão que passar. Direto pra casa. O horário nunca é bom, e ele está quase lotado. Por sorte, há ainda um único lugar disponível. Acerto o passo com perícia, para não me desfazer ali mesmo, e vou sentar. Bem do lado da menina para quem mandei a primeira cartinha de amor, na alfabetização...

Aula de edição

Foi-me solicitado um texto para o jornalzinho do colégio em que fiz meu ensino médio (e pelo qual nutro afeição verdadeira). Era para ser algo como "ex-alunos e onde estão".

Não foi definido o tamanho (uma lauda, mais ou menos). Fiz, então, uma página e sete linhas. Grande, sim; mas esperava que, sendo eu estudante de jornalismo,  o mínimo que fariam é, se preciso, me pedir para editar e reenviar o texto com o tamanho especificamente adequado. Na verdade, o que fizeram foi, sem me perguntar nada, pinçar parágrafos para criar um "texto-frankstein".

Claro que a edição altera o sentido. Só que o jornal saiu  com minha assinatura. Tiragem de 3000 exemplares. Por isso, achei legal publicar, aqui, as duas versões: a origem e a que foi atribuída a mim.

Assim como eu fiz, divirtam-se.


Original

Algum tempo hesitei se devia abrir esta breve exposição pelo princípio ou pelo fim. Isto é, se poria em primeiro lugar os meus anos de aluno NAP, dos quais as lembranças respiram sem esforço; ou a minha atual condição, a uma volta no Sol de me graduar jornalista pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE).  

Suposto o uso canonizado seja começar pelo cabo, duas considerações me levaram a desejar um método diferente. A primeira é que não sou Machado de Assis, cujo brilhantismo me faz mastigar a inveja na língua; e a segunda eu não consegui pensar direito. Depois de esfolar uns tantos neurônios, decidi falar sobre algo de que não havia me dado conta até aqui: a relevância do JorNAP no meu direcionamento profissional. De certa forma, serve para sintetizar o encontro dos dois momentos (o princípio e o fim) lá de cima. 

Quando era eu quem ocupava a espaçosa cadeira verde-hospital do colégio, nos anos de 2006 a 2008, aguardava ansioso por cada edição semestral que ajudava a produzir. Ficava com as orelhas em brasa quando via um texto, com minha assinatura, modificado pela droga-da-editora-profissional-assassina-de-matérias-que-a-escola-insistia-em-contratar. Meio Narciso mesmo (mal de 12 a cada 10 jornalistas, ainda que mirim). O fato é que essa foi a primeira oportunidade que tive para trabalhar (e teimar, e limar, e sofrer, e suar) com informação, sabendo que – valei-me, meu São Francisco (de Sales, e não de Assis) – alguém ia me ler. 

Tomei gosto pela coisa. Apaixonei-me pela possibilidade de narrar as mais diferentes histórias (paixão que não passou – e o coração continua); sem que fosse necessário fazer uso da imaginação. Não que não seja.  Mas jornalismo é, essencialmente, trabalho de prospecção, de tato; de saber resgatar da lama da ignorância a pepita mais reluzente da notícia. Para isso, é preciso se despir de qualquer preconceito e estar sempre disposto a manter as discussões abertas, sem cerrar questões ou definir estatutos. 

Prestei vestibular em 2008, quando o curso era o terceiro mais concorrido; e o diploma, obrigatório. Passei. Estudo no Centro de Artes e Comunicação (CAC), que, de forma geral e grosseira, é o espaço de convergência das figuras mais irreverentes e bizarras da cidade. A título de ilustração, a primeira pessoa que lá avistei foi um senhor de 60 anos cuja cabeça fazia vez de alicerce para um moicano punk, pintado de rosa choque. Encantei-me pela Universidade. 

Mas nem tudo é poesia. Em termos de gestão de curso, a UFPE ainda tem muito a aprender. Muitas cadeiras são repetitivas; e uns tantos professores, intelectualmente preguiçosos. Não me constrange afirmar que aprendi mais debatendo pelos corredores do que silenciando na sala de aula. Paralelamente, o mercado de trabalho é um ponto que sempre suscita dúvida em quem pondera se aventurar na profissão. Quanto a isso não há mistério: saiba que o ofício não é dos mais bem pagos, e é preciso mergulhar de frente (estabelecer boas relações e demonstrar perícia) para se consolidar na área. Faz-se importante dizer, no entanto, que, enquanto estudante, estágio não falta. 

Ingressei na UFPE para me preparar. Também, durante esses três anos, ministrei aulas no projeto NAPcomunidade (que recomendo a todos, o lucro profissional e humano é impressionante). Tive meus louros e minhas frustrações, mas continuo sem me sentir pronto. No dia em que começar a achar que sou um jornalista feito, saberei que passou da hora de parar.  

Sei que a interrogação é a maior das minhas armas. Através dela, desbravam-se campos inóspitos das verdades absolutas e se rompem os grilhões do atraso. A grande sacada reside em saber que a certeza nunca fez o mundo andar. Ser jornalista é respeitar o diferente, respeitar o outro. Por isso, é a arte do encontro entre pessoas, suas histórias, e o mundo. Diferente do defunto-autor, que mais nada pode fazer sobre a terra, o fazer jornalismo é postura de reflexão; e a reflexão provoca mudanças. 

Muita gente diz que foi inevitavelmente arremessado no obscuro mundo da imprensa, já que não saberia lidar com qualquer outra coisa. Comigo não. Eu escolhi, porque quis; mas entendo quem não topa comprar o risco. Não me arrependo dois dedos.

Publicado 

Algum tempo hesitei se devia abrir esta breve exposição pelo princípio ou pelo fim. Isto é, se poria em primeiro lugar os meus anos de aluno NAP, dos quais as lembranças respiram sem esforço; ou a minha atual condição, a uma volta no Sol de me graduar jornalista pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE).

Prestei vestibular em 2008, quando o curso era o terceiro mais concorrido; e o diploma, obrigatório. Passei. Estudo no Centro de Artes e Comunicação (CAC), que, de forma geral e grosseira, é o espaço de convergência das figuras mais irreverentes e bizarras da cidade. A título de ilustração, a primeira pessoa que lá avistei foi um senhor de 60 anos cuja cabeça fazia vez de alicerce para um moicano punk, pintado de rosa choque. Encantei-me pela Universidade.

Muita gente diz que foi inevitavelmente arremessado no obscuro mundo da imprensa, já que não saberia lidar com qualquer outra coisa. Comigo não. Eu escolhi, porque quis; mas entendo quem não topa comprar o risco. Não me arrependo dois dedos.

*A edição e publicação do jornal são terceirizadas 
 

Heroína

Sabe,

se eu pudesse, mandava na veia uns sete litros de Bukowski, Camus e Vinícius. Mas só depois mesmo de entupir tudo o que for de artéria.

Pra não ter chance de escapar ao coração.

- Garçom, tem um bigode na minha democracia!



Alguma vez na vida, você deve ter ouvido um professor entediante afirmar que a Idade Média foi marcada pela crença no significado sobrenatural do universo. Acontece que, na pegada dualista do carrossel da fé, se costumava atribuir significações positivas e negativas às coisas. Um leão podia ser Cristo ou o Demônio. As ervas e, veja você, até as pedras serviam a Deus ou ao Diabo. Ou a Deus e ao Diabo.

Não seria diferente com as cores. O vermelho, por exemplo, representava a coragem da nobreza; os carrascos e as prostitutas. Eis que o tempo, em poder da imprevisibilidade, faz com que as matizes carreguem nas costas novos valores. O verde de anos atrás, embora seja igual, não é, hoje, o mesmo.

Os sentidos são reciclados de acordo com os perfis em que se moldam as sociedades. A importância em evidenciar esse processo que – note a obviedade – é histórico reside, justamente, em evitar cair na falácia da naturalização. Do é, porque é. Nada é, porque é.

Toda essa longa – e igualmente entediante quanto no ensino médio – exposição foi para tentar mostrar que os valores se renovam, mas não se desprendem de sua raiz. O que não descarta (ao contrário, potencializa) a qualidade plural das coisas. Assim, também é com as palavras.

Muitos termos, no entanto, provam o dissabor de terem seus sentidos distorcidos. Não é que haja um significado engessado (estaria, inclusive, me negando se assim afirmasse), mas é que se faz preciso encontrar elementos que sustentem, objetivamente, determinado valor. Vou esclarecer.

Uma das expressões que mais sofre com uso arbitrário é democracia. Do grego: demo, povo; kracia, governo. Bem verdade é que, na poeira da Antiguidade, povo era entendido de outra forma (isso também é papo amarrotado de pré-vestibular). Aos pés do Olimpo, mulheres, estrangeiros e escravos são café-com-leite.

Hoje, compreende-se democracia como respeito às diferenças, o combate às imposições e a luta pela afirmação dos indivíduos. Claro que não é restritivamente isso, mas – como cantam as cores medievais – é isso também. Inevitavelmente, contudo, sempre há alguém para meter o dedão sujo no sentido das coisas. Tentar empurrar uma significação a-histórica. Só para azedar a aquarela.

Por aqui, o desbotado presidente do Senado, José Sarney (PMDB-AP), achou justo riscar os céus do Maranhão a bordo de um helicóptero. Problema zero, se não fosse um porém: o aparelho pertence à Polícia Militar do Estado, e a viagem era de cunho particular.

Quando em carne viva, a pele é mais sensível. Sendo Sarney um dos maiores colecionadores de embananamento administrativo no país; foi inevitável impedir a nova saraivada de protestos.

Mas o dono do bigode mais imponente do Legislativo não se encabulou. Clamou ser seu direito passear pelos ares com dinheiro público. Falou em nome da liberdade e dignidade dos parlamentares que, coitados, não podiam chafurdar na miséria das estradas. Nem sujar os pés na lama comum aos brasileiros-de-todo-dia. Falou em nome da democracia.

"Quando a legislação diz que o presidente do Congresso tem direito a transporte de representação, estamos homenageando a democracia, cumprindo a liturgia das instituições". Aí, está. Veja que o senador faz, ainda, uso confuso de outra palavra escorregadia. Liturgia. Que também vem do grego, e, originalmente, quer dizer trabalho público. Trabalho público, helicóptero público. Interesse particular.

Perceba que, por trás da “homenagem”, se escondem valores muito mais próximos da Idade Média. Pois, o poder não é ocupado para representar o povo, mas para ser servido por ele. E isso não deveria ter nada a ver com o entendimento político atual. Assim como, hoje, ninguém acredita que o leão é símbolo do capeta. Pelo menos, não deveria.

O que Sarney não consegue fundamentar é a manutenção de prestígios em um país que contrasta um dos maiores quadros de desigualdade social do mundo com o fato de hospedar o parlamentar mais caro do planeta (e para quem, em dezembro de 2010, foi aprovado aumento de 61,83%). A sua base argumentativa sustenta-se no privilégio e no personalismo. Por isso, é anacrônica.

Pode-se pensar a democracia por vários tons, mas é de uma covardia imensurável dela fazer uso para maquiar a autonomia dos representantes frente à soberania popular. O caríssimo senador se esquece que o político digno é o que responde junto a um povo digno; e não um político milionário. Enquanto se der suporte para regimes “de cima para baixo”, o brasileiro continuará sufocando em sua própria vergonha.

No século treze, São Tomás de Aquino dizia que o homem julga belo aquilo que possui cores nítidas. Hoje, a “democracia” de Sarney revela uma opacidade tão turvamente definida que caminha para a escuridão da ignorância. O branco dilata a pupila; o negro contrai. E o momento é de abrir os olhos. Lançar luz na condição da democracia como conceito e como prática. Pois, por mais que ela passeie por toda uma escala cromática de sentidos, não pode deixar de ser transparente.

diário exercício da desconfiança

04 de março,

Achei uma aranha minúscula dentro do meu livro. Num impulso de malvadeza, aproximei meu cigarro da aranha que se pôs a correr freneticamente. Coloquei o cigarro aceso à sua frente, ela mudou de rota. Repeti o ato várias vezes até a aranha se imobilizar. Deixei-a sossegada por um tempo. Num novo impulso, aproximei o cigarro aceso por cima, e ela voltou a correr. Continuamos assim por uns dois minutos. Ela então cansou, encolheu as pernas e tornou-se imóvel mesmo sem ter sido tocada pela brasa do cigarro.

É possível que, para essa aranha, o tamanho do livro seja o do Japão, e cinco minutos sejam cinco ou dez anos. Durante esse período, e nesse espaço, onde quer que ela fosse, havia fogo. E quando ela parou, o fogo veio de cima... Se isso acontecer a um ser humano, ele enlouquece. A aranha não entendia de onde vinha aquela chama. Seres humanos também perdem.

Desejo me tornar um homem capaz, mesmo que a grande custo. Capaz de identificar objetivamente a causa do problema, e transmitir esse conhecimento à geração seguinte. Feito isso, posso morrer. Através da alegoria da aranha traço um retrato doloroso do povo japonês nestes tempos de guerra – sem entender o que ocorre, ele corre sem rumo, em busca de uma saída para a situação impossível causada pela guerra.

- Sasaki Hachiro, 22 anos





“Quando a operação tokkotai foi criada, em outubro de 1944, nem um único piloto oficial treinado nas academias militares japonesas se apresentou como piloto voluntário – todos sabiam que se tratava de missões suicidas.

Os 'voluntários' foram perto de 3 mil 'meninos-soldados', nome dado às levas de adolescentes recém-recrutados como parte do esforço de guerra. Outros mil eram 'soldados-estudantes', universitários formados às pressas pelo governo para entrar nas fileiras militares. (...) Eles eram cosmopolitas e cultos, dados a reflexões profundas, fruto do exigente currículo escolar japonês. Era obrigatório o estudo de duas línguas estrangeiras, além do latim.'”

Revista Piauí, 61

A primeira crônica

Já de novo no laboratório, encerro um itinerário por corredores estreitos e escadas escuras. Os meio-andares do CAC desfilam um tom blasé que contrasta com todo o resto. Beberico minha água; custou-me um real lá fora. Na realidade estou adiando o momento de escrever.

Talvez, a perspectiva me assuste. Preciso descobrir uma crônica em até oitocentas palavras. Tenho que fazer agora. Resmungo. Oitocentos é um bocado. As barraquinhas não vendem idéias, só água. Se passar de seiscentos, já dá. Tudo bem... não parece tanto. É um bocado. Quantos tempos cabem em oitocentas palavras? Sei que deveria caber o meu. E é preciso que caiba agora. O agora.

Gostaria mesmo de estar inspirado. Pior que, diante da obrigação de produzir, as horas tomam nanoproporções. Se ainda fosse notícia, que a gente cultiva e colhe... crônica é diferente. Ela que encontra a gente. Ter que escrever faz com que eu sangre. Feito Aquiles, mortalmente ferido, não; mas, efeito inverso, qual fêmea em trabalho de parto. Por isso bebo. Faço de esquecido que delongar o inevitável é construir o prolongamento da angústia. A cada gole d’água, sangro mais um pouco. Lentamente; gotejando. Um gole, uma gota; um gole, uma gota. O tempo é meu calcanhar.

A fórmula conheço, sim: “buscar o pitoresco ou o irrisório no cotidiano de cada um”. Foi-me ensinado por quem sabe. Melhor, foi-me passado; ensinado é para outra coisa. “Recolher da vida diária algo de seu disperso conteúdo, que nos envolve em convivência”. Engraçado como é bem mais fácil na boca dos grandes, e não quando fica revirando aqui dentro. Precisando sair. Não sou bom em pescar metonímia. Na beira do cais, deixo o anzol sob os meus pés ou o lanço ao horizonte? Quem souber que fale agora. Ou que fale o agora. Tomo mais um gole.

Não é possível ser tão difícil. O circunstancial, o episódico, dá de cacho. Podia, muito bem, falar do pedinte – em nome de uma instituição muitíssimo séria, da qual nunca ouvi falar – que me chamou mau-caráter no ônibus. Ou da babá negra que leva diariamente, de mãos enlaçadas, a criança loira para a escola. Todos os dias, alguém morre de inanição na Namíbia, um velho-novo escândalo pipoca no Congresso e um pobre comemora aniversário espetando três velas minúsculas em uma fatia simples de bolo amarelo-escuro. Não quero falar de nada disso. Definitivamente, não sou Fernando Sabino e estou sem assunto. E minha água acabou.

O sangue, no entanto, continua gotejando. Preciso fazer alguma coisa. Vou dar uma volta na sala, a fim de não deixar escapar a esperança de ver descer o texto. Meio assim, como quem anda para fazer digestão. Mas também, em meu infortúnio, não sou Chico Xavier. Ao fundo do laboratório, outros estudantes, com a mesma atribuição que a minha, se dedicam à atividade. Narrar. São mãozinhas frenéticas que marcam o teclado; compondo o som da inspiração. Só que dos outros. No meu teclado, pois, é a minha mão que precisa ditar a música. E ela só espera. Muda.

Seria injusto, entretanto, reclamar solidão ao sofrimento. Há também os que encaram a tela do computador esperando que a descarga de elétrons, que ali se desmancha em imagens, carregue o sopro da inspiração. Mesmo eles, tão iguais, não me pungem. Por desespero final, lanço um último olhar para fora de mim, onde deveriam viver os assuntos que merecem uma crônica. Deveriam. A saída, se é que se pode chamar assim, é olhar para dentro. De onde, como ampulheta, não pára de pingar.



O fluxo tingiu o relógio de vermelho. Quando meu tempo já tiver ido; no agora, serei minhas palavras. Assim eu quereria minha primeira crônica. Não dá para ser pura, enquanto não me livro de mim mesmo.

Para escrever no laço

"Desses conflitos insolúveis entre os princípios morais, infere-se que a esfera dos juízos de valor e da política é o âmbito não da racionalidade pura (lógico-conceitual), mas da razoabilidade (retórica e persuasão), justamente porque os fins não são conspícuos e nem universais."

- Eduardo Maia

James Nachtwey e a guerra do fotógrafo



Durante dois anos, as micro-câmeras de Christian Frei percorreram territórios de conflito. Não se faz, aqui, necessariamente referência a Kosovo, à Palestina ou à Indonésia – locais em que foi gravado seu filme, Fotógrafo de guerra (2001) –; mas ao que, em essência, o diretor suíço se propôs documentar: o trabalho de James Nachtwey.

Norte-americano por capricho e jornalista por fatalidade (a inquietação diante do mundo, e o mundo diante da guerra do Vietnã); Nachtwey reservou a si o peso de traduzir em combinação cromática as iniqüidades silenciadas. A densidade do que realiza, entretanto, o obriga a caminhar na ponta dos cacos sobre a linha tensionada da conduta moral. Em uma mão, a máquina fotográfica ganha contornos de sombrinha; na outra, deixa debater a convicção de que uma imagem pode fazer mais barulho do que se imagina.

A condição natural da guerra (se é que é possível assim falar), por si só, já subverte qualquer questão ética previamente estabelecida. A gravidade da conjuntura demanda um trato específico, mais complexo. Situações extremas são tentadoras frente à possibilidade de exploração do outro, e do sentido que é gerado a partir daí. Por isso mesmo, para que não se perca de vista os princípios de respeito e não se deixe escapar a condição de indivíduo do retratado, é preciso que a relação fotógrafo-fotografado seja explícita. Exprimir dor, sofrimento e tristeza só é possível por meio da cumplicidade entre quem os sente, porque é consigo, e quem os sente, porque é consigo, já que é com o outro. É justo por não ser alheio que não se pode dizer que Nachtwey – tal qual abutre – se “aproveita da desgraça alheia”.

Tendo em vista o fotojornalismo como gênero com função social específica, de informar dentro de um regime estético; seu trabalho também pode ser analisado sob o crivo dos critérios de noticiabilidade. Em primeiro plano, traz-se o fato de que – se o que Nachtwey relata não é de todo novo – nunca deixou de ser atual. Farelos de combate, pobreza, fome, destruição além de evidenciarem um quadro de hoje, se associam com aspectos correspondentes do repertório da cultura ocidental. Como agulha quente por sobre nossas chagas históricas.

Além disso, a relevância salta de suas fotografias. Elas conseguem tornar comum a situação material, política e social. Talvez com mais eficiência que com palavras, fazem com que um caso específico se torne metonímia de uma realidade. É meio o mesmo caminho que Mário Quintana traçou quando disse que “um bom poema é aquele que nos dá a impressão de que está lendo a gente... e não a gente a ele”.

Para completar, a calamidade e a violência alimentam as pulsões de catarse. Geram cargas emotivas que, se manuseadas com perícia (o mérito do bom fotógrafo também reside em construir representações expressivas), revestem a notícia de interesse. E, finalmente, é necessário lembrar que o tema da morte nunca abandonou a pauta de aflições humanas. Ela, que é matriz dos nossos maiores mistérios e dos mais profundos conflitos existenciais; é suficiente, portanto, para assegurar a importância de qualquer evento em que esteja presente.

Em Fotógrafo de guerra, há o perfil de um homem que, através da mudez das imagens, consegue dar voz a um mundo preterido. O tom obstinado – em que até fotos coloridas soam em preto e branco –, o domínio de recursos de composição geométrica e as estratégias narrativas se somam na equação para falar, de forma sensível e crítica, do que há de mais hostil. A beleza resignada de suas fotografias repousa em não querer tornar bonito o feio.

Óbvio

Veja você, o nonsense hospeda, no útero, uma razão conceitual. E, se o pretexto lhe é inegociável; não se basta, portanto.

A grande sacada, em fim, se constrói por meio da estratégia de negar qualquer imposição de realidade, determinando regimes diferentes de percepção.

Faz-se do realismo preconceito retórico.
Já que estranhar o absurdo é encontrar-se com o absurdo real de nós mesmos.






- Falo de coisas simples com surpresa, porque só agora nelas esbarrei. Me deixa contente o gosto da obviedade. Fico assim: como se tivesse me dado conta da gravidade mais de trezentos anos depois de Newton.

Onde a auto-metonímia encontra abrigo

Nada ocorre com a minha memória, ela ainda funciona como o piano da sala - se o sabem machucar da forma como se deve - mas é que algumas coisas se largam da pele no tempo, e isso vem a ser com quase tudo.

-sidney rocha

Identidades do Cárcere - a vida na Colônia Penal Feminina do Recife

Está no imaginário social. Quadro de presídio é pintado em cores de tensão, tristeza e revolta. São mãos que, em bravata, agarram as grades desgastadas, no encontro grosseiro entre a bestialidade e a autocompaixão; é o silvo metálico que ressoa, em quandos, na espinha dos corredores emudecidos; é o bafio sombrio e empoeirado do claustro; e, o que assola, é a solidez da solidão.

As experiências, dali, não se carregam em porta-retratos.

Como se não bastasse a atmosfera opressiva de toda instituição totalizante, o sistema carcerário brasileiro convive, no quesito hostilidade, com um agravante a um passo de ser naturalizado: a superlotação. Presos são apinhados em cubículos de concreto; por vezes, celas, regularizadas para receber até cinco pessoas, aglutinam quase trinta. A realidade subumana – em que palavras como privacidade e organização, há muito, não são ouvidas – materializa um universo dantesco, com menos literatura que na Renascença. Bem menos.

Entretanto, parte do que se pensa – e muito do que se cria sobre os presídios – não atravessa a risca da suposição coletiva. Ao contrário do que a mitologia perpetuada aponta, é possível buscar alternativas de humanização, mesmo em meio a condições de extrema adversidade. A política de ressocialização aponta que, através do trabalho e do acompanhamento escolar, detentos conseguem fixar os primeiros degraus na escada de saída de seus infernos particulares. O encontro entre instrução e aprendizado tem, no fortalecimento da condição de indivíduo autônomo e livre, sua foz.

A Colônia Penal Feminina do Recife, localizada no bairro de Engenho do Meio, zona oeste da cidade, tem capacidade para abrigar 150 mulheres. No dia 23 de maio, recebia 675. Segundo o Conselho Nacional de Justiça (CNJ), as condições do estabelecimento são péssimas. Nas celas, sequer há espaço para o varal. O banheiro é minúsculo, e uma cortina de tecido barato faz vez de porta. Desse lado, o repertório de atividades é minguado, dormir e assistir a uma televisão de 14 polegadas – a que toda cela tem direito, se for fornecida pela família das detentas – é, na melhor das hipóteses, o que se tem para fazer.

Duas faces da realidade

Da inércia e da desordem, se cria um ambiente de angústia compartilhada, que reduz a perspectiva mais simples à menor chance de se fazer concreta. Não se afogar no charco do desestímulo parece impossível. Mas só parece. Quase 22% das detentas conseguem fazer da vida que ali se leva também uma experiência socialmente construtiva, minimizando as chagas que a convivência na instituição provoca. Hoje, 147 mulheres trabalham na unidade; ou no setor administrativo – as chamadas concessionadas – ou em uma das quatro empresas privadas parceiras da Colônia Penal.

Empregar mão-de-obra dos presídios não é caridade. Augusto Sales, supervisor de laborterapia, explica que, de acordo com a Lei de Execuções Penais, se trata de um negócio vantajoso para as empresas. Não precisa pagar férias, décimo terceiro salário e nem rescisão contratual. Só devem ao Estado, todo mês, o valor de dois salários mínimos, para custear a energia e a água por conta das instalações, que funcionam na própria unidade prisional. O empresário também é responsável por montar o espaço de trabalho, com reformas de galpões, teto e instalações elétricas.

As detentas que trabalham no setor privado recebem 75% do salário mínimo (R$ 408,75) em espécie. Já para as concessionadas, 25% desse valor é retido na poupança que o Estado faz para cada uma. Recebem-se R$306,56 e os R$102,19 restantes são armazenados todo mês. Uma vez em liberdade, tem-se acesso integral ao dinheiro.

Ao chegar à Colônia Penal, a reeducanda faz um cadastro em que registra suas habilidades e experiências. Assim, se deveria fazer o processo de seleção para as vagas de trabalho, mas nem sempre é o que acontece. A indicação também é um fator preponderante na hora de escolher quem deve ser beneficiada pelo vínculo profissional.

A vida em um dos presídios

Antes de entrar na Colônia Penal Feminina do Recife, deve-se passar pela recepção. Uma saleta de tom triste, com ar-condicionado e relógio prata pendurado na parede, cuja mobília se resume a um sofá preto de três lugares e um birô branco, sobre o qual repousa o jornal do dia. A comunicação com a rua acontece por meio de uma delgada portinhola que precisa ser arrastada para abrir, deixando apenas os olhos à vista. Sobre o portão negro de ferro, uma câmera de segurança monitora a movimentação.

Do lado de fora, meia dúzia de parentes das detentas eram castigados pelas chuvas de maio. Acotovelando-se sob o beiral, teriam que esperar por mais de quatro horas para tentar emitir a carteira de visitação. Em vão; a greve dos agentes sociais paralisara a atividade. Lá dentro, dois funcionários, sem muito trato na gentileza, lembram que entrar no presídio com celular é crime. Eles anotam (e retêm), como quem faz favor, a carteira de identidade dos visitantes.

Uma vez na unidade, no entanto, a primeira impressão do ambiente escapa ao estereótipo. Depois da vistoria na recepção, se chega a um corredor onde algumas presas circulam livremente. São elas que apontam o caminho da Sala de Administração. Com naturalidade, ficam sentadas, observando o movimento como se fossem supervisoras de colégio. O fato de não estarem enclausuradas o tempo inteiro tem explicação: são também funcionárias do presídio. Precisam efetuar uma série de tarefas, entre as quais fazer faxina, entregar encomendas que já foram revistadas e servir cafezinho para os agentes penitenciários. O uniforme lilás as diferencia.

O corredor, com uma samambaia de plástico pendurada na entrada, tem forma de L. Na entrada, uma porta dá acesso ao galpão em que funciona uma empresa de costura. Engana-se quem acha que os produtos fabricados ali servem para uso no presídio; na verdade, são vendidos em grandes lojas de Recife. Na final do corredor, há o berçário onde as gestantes, que demandam cuidado sanitário específico, são isoladas. Antes disso, na curva, uma grade com trava elétrica, daquelas que são abertas por um interfone, o separa do pavilhão central, onde acontece a maior parte das atividades sociais do presídio.

Bem no centro do pátio de convivência há uma pequena quadra de cimento, onde um grupo joga vôlei com o professor de Educação Física. Em suas pilastras estão amarrados os barbantes em que secam dezenas de roupas. Tudo é visivelmente improvisado. Ao redor, o chão é de terra batida. O pavilhão é retangular; nas duas laterais, funciona uma série de estabelecimentos da unidade. São como casinhas enfileiradas, cada qual com uma atividade distinta. Aos fundos, do lado de uma guarita suspensa completamente vazia, há um imenso portão cinza. É através dele que cinco reeducandas, vigiadas por dois agentes, despejam sacos de lixo na rua. Na mesma hora, na cozinha, um grupo prepara o almoço do dia: fígado com feijão.

No final do pátio, o salão de beleza Zuzu Angel está lotado. Ele pertence ao Estado; os tratamentos estéticos devem ser comprados na administração da Colônia Penal, e servem para custear os gastos da unidade. As manicures sempre cobram novos alicates de unha. Um corte custa R$8,00, já a escova sai por R$12,00. A média de preço na cidade, para os mesmos serviços, é, respectivamente, R$25,00 e R$30,00. Do outro lado, uma cantina vende almoço para quem não aprecia a comida da prisão. E também material de higiene pessoal, bebida não-alcoólica e cigarro. O chocolate está em falta; a sardinha custa R$3,00 e a lata de creme de leite R$2,00. O maior lucro fica a cargo do refrigerante, vendido em garrafas de dois litros a R$5,00. Os 1.700 pães diários, consumidos no presídio vêm da padaria, que fica entre as duas partes da cantina. Cinco mulheres os produzem em um ofício que é passado pelas gerações de detentas.

Em outras salas ao redor do pátio, funcionam as empresas. Algumas são escuras e úmidas, por conta de vazamento. Segundo Sales, o problema será solucionado com a reforma do andar de cima, que deve receber nova parceria, já em processo de negociação. Outras, em locais mais claros e ventilados. A fábrica de costura é a única que fica na área externa, perto da recepção. Lá, um pequeno quadro salta aos olhos. Traz uma lista com a quantidade de materiais usados por elas como chave-de-fenda, estilete, tesoura. Todos os dias, a recontagem das ferramentas é feita. “Já sumiram?”. Sales: “Já, mas ameaçamos: 'se não aparecer até o fim do dia, todo mundo perde o emprego'. Apareceram”.



Lúcia* está presa há mais de três anos. Com quinze dias na Colônia Penal foi chamada para trabalhar. Por ironia, em casa, a máquina de costura da mãe nunca a atraiu, mas, no presídio, seu primeiro ofício foi confeccionar lençóis. Com pouca familiaridade, teve que se desdobrar para traçar os primeiros pontos. Com o tempo, passou por uma empresa de produtos para construção civil – que não funciona mais – e, há quase um ano, está no setor administrativo. Trabalha com a agente penitenciária Fátima Vasconcelos. Como a própria Lúcia explica, faz “de tudo um pouco, concentrando-se na limpeza’’.

Fátima conta que, quando estava perto de sua funcionária anterior sair da prisão, passou a observar as demais detentas. A dedicação e o valor que Lúcia atribui a tudo que faz lhe chamaram atenção. Tal zelo só pode ser justificado pelos benefícios que a ocupação proporciona. Além do aprimoramento profissional, ela possibilitou à reeducanda estreitar relações com suas colegas de trabalho, “são como uma família para mim’’, explica. Assim, foi possível tornar produtivos e menos estafantes os dias na Colônia. “Lá fora, às vezes, a gente não quer nada; a mãe dá conselho, mas a gente tem que vir parar aqui pra pensar. Eu acho que, se fosse hoje, não estaria aqui”.

Lúcia já dividiu com outras 19 pessoas a mesma cela. Mesmo assim, contrariando o que se espera, conta que, embora muita gente discorde, a sua vida no presídio está longe de ser um inferno. Acorda cedo, toma café, e às 8h começa o expediente que só termina às 16h, com uma hora para almoço, ao meio-dia. A convivência com as detentas que não realizam nenhuma atividade é mínima.

Diva* também tem vida ativa na prisão. Há dois anos e oito meses trabalha na costura durante o dia. À noite, é aluna da Escola Olga Benário Prestes, que funciona na Colônia Penal. “Todo benefício pra reeducanda é bom. Escola, trabalho, pintura, arte, tudo! Porque você ocupa a mente. Se você ficar só dentro da cela, começa a maquinar só coisa do mal. Nunca vi ninguém parado pensar coisa do bem, nunca vi. Então você começa a pensar: 'estou parada, precisando de dinheiro, acho que vou colocar uma droga no corredor. Estou parada, vou fazer uma cachaça...’”.

Durante os três primeiros meses, só uma preocupação a consumia, ir embora. No entanto, as experiências de ser mãe e, principalmente, avó caíram-lhe quase como uma epifania. Descobrir outros sentidos para a vida a fez pensar em não mais se envolver com drogas. A guinada lançou luz sobre seu futuro, materializando-se em planos. Decidiu: quer montar um lava-jato, quando estiver do outro lado do muro.

Diva já ganhou um concurso organizado pela Secretaria de Ressocialização (SERES) com um cordel contando a experiência da sua prisão. A literatura é incentivada na escola do presídio, e é importante na afirmação de identidade e entendimento da sociedade. “As pessoas nos dizem: ‘Não, porque a sociedade recrimina lá fora...’, ora! Quem é a sociedade, se não somos nós?!”, explica.

A partir das 11:30h, o almoço começa a ser servido no berçário, já que as gestantes têm preferência. Uma senhora negra, aparentando ter bem mais de 40 anos, com um piercing na sobrancelha, está sentada no chão. Na altura do ventre abaulado segura uma panela de inox, da qual retira, com uma concha, o feijão, servindo-o em um pote branco de sorvete com seu nome pintado em esmalte rosa. Por etapas, as detentas vão esvaziando as celas e ocupando o refeitório. Sempre reclamam da comida.

Sem muito esforço, é possível observar que a Colônia Penal funciona como se fossem duas: uma para as que estudam ou trabalham; outra para as que não. Vivem como se em um bairro, com seus moradores e atividades. Uma das “moradoras”, sentada perto do salão, conversava conosco, como um daqueles bate-papos entre vizinhos que não podemos ser. Falava sobre Brasília, sua terra. No decorrer da conversa, contou com naturalidade o que soou como uma surpresa: “Eu moro na Asa Norte**”. Ela mora em Brasília, verbo no presente. Já que, na Colônia Penal, só se está de passagem.




*nome fictício
**bairro da cidade de Brasília

 
em parceria com Alana Lima

Joões são os outros

Não era a todo mundo que o baiano João Gilberto dava confiança.

Estava, certa vez, em casa com Astrud Gilberto, sua esposa, e um amigo portoalegrense, Alberto Fernandes, quando seu padrinho de casamento, Jorge Amado, telefonou-lhe.

Ninguém menos que Jean Paul Sartre e Simone de Beauvoir, em visita ao Brasil, estavam em sua casa no Rio de Janeiro. Não seria ótimo que João desse um pulinho até lá e levasse o violão?

"Está bem, Jorge. Eu já vou."
Sartre e De Beauvoir já morreram. Até hoje, João Gilberto não chegou.





Adaptado de Chega de Saudade, de Ruy Castro.

Canções de exílio


“Decide-me: Brasília, sem ser nomeada, seria o centro da canção-monumento aberrante que eu ergueria à nossa dor, à nossa delícia e ao nosso ridículo.

Bem, pelo menos era assim que eu sentia as coisas no paroxismo da inspiração. A canção real que consegui fazer me entusiasma muito menos do que a imagem difusa que eu fazia dela quando ela era apenas uma possibilidade. Mas ela exerceu forte impacto no ambiente de música popular e em muitas cabeças interessantes no Brasil – e rendeu estudos acadêmicos em que foi chamada repetidas vezes de ‘alegórica’. E conheceu considerável sucesso popular.

O arranjo dessa canção ficou a cargo de Júlio Medaglia. Eu tinha distribuído o repertório do disco entre os três maestros da ‘música nova’ de São Paulo que se aproximaram de nós: Medaglia, Damiano Cozzella e Sandino Hohagen. Rogério Duprat – na verdade o mais interessante deles – chegara um pouco depois e, a partir de ‘Domingo no Parque’, tinha ficado mais ligado a Gil. No dia da gravação da base orquestral dessa música, apesar de ser para mim a mais representativa, era a única que não tinha título, o baterista Dirceu, que nada sabia sobre o que tratava a letra que só seria gravada depois, ao ouvir a introdução em que sons percussivos, cantos de pássaros e intervenções do naipe de metais se superpunham, lembrou-se da carta de Pero Vaz de Caminha descrevendo a paisagem brasileira no momento do descobrimento. A gravação que foi aproveitada contém o discurso que Dirceu improvisou de pura gozação, sem imaginar que já se estava gravando, e muito menos quão adequada era sua falação ao tema tratado na letra. ‘Quando Pero Vaz de Caminha descobriu que as terras brasileiras eram férteis e verdejantes, escreveu uma carta ao rei: tudo o que nela se planta, tudo cresce e floresce e’, numa referência ao técnico de som Rogério Gauss que comandava a mesa de gravação, ‘o Gauss da época gravou!’, ouve-se Dirceu dizer antes que eu entre com os primeiros versos instauradores do panorama em que se desenrolará a construção da visão algo cubista:

Sobre a cabeça os aviões
Sob os meus pés os caminhões
Aponta contra os chapadões
Meu nariz
Eu organizo o movimento
Eu oriento o carnaval
Eu inauguro o monumento no planalto central do país.



A canção, longa, depois de passar pela imagem de uma ‘criança sorridente, feia e morta’ que ‘estende a mão’ de sobre os joelhos do ‘monumento’, por uma ‘piscina com água azul de Amaralina’ e pelos ‘cinco mil alto-falantes’ que ‘emitem acordes dissonantes’ (sempre intercortada por um refrão musicalmente fixo mas de letra variável, dando vivas a pares de rima primária e contiguidade desconcertante, como ‘Viva a bossa sa-sa/ Viva palhoçaça-ça-ça-ça’, ‘Viva Maria iá-iá/ Viva a Bahia iá-iá-iá-iá’, ‘Viva Iracema ma-ma/ Viva Ipanema ma-ma-ma-ma’), termina por arrematar o grito de Roberto Carlos ‘que tudo mais vá pro inferno’ com um ‘Viva a Banda da-da/ Carmen Miranda da-da-da-da!’. Claro que a frase mais famosa do Rei Roberto, seguida da Banda do Chico e do nome de Carmen Miranda (cuja última sílaba repetida evocava o movimento dadá e, pra mim, misturava seu nome ao de Dadá, a famosa companheira do cangaceiro Corisco, estes dois últimos personagens reais e figuras centrais de Deus e o Diabo na Terra do Sol), dava, de forma elíptica mas imediatamente perceptível por qualquer brasileiro que ouvisse canções (nunca foram poucos), uma reestudada geral na tradição e no significado da música popular brasileira. Mas cada refrão tinha sua constelação de sugestões ou referências. Além da ‘bossa’ noelina e nova e elisreginianamente televisiva colada à ‘palhoça’ temos o nome do filme Viva Maria, de Louis Malle (Brigitte Bardot era uma presença feminina muita mais constante em minha mente do que a de Marilyn, como já disse), um filme sobre mulheres e revolucionários na América Latina, seguido de ‘iá-iá’, que é o modo como os negros da Bahia (que é a palavra que se segue no refrão) sempre chamaram suas patroas ou donas, assim como toda mulher que lhes fosse superior, uma vez que iá é ‘mãe’ em iotuba; depois o par ‘Iracema’ (um anagrama de América, nome da índia que é a personagem central e título do belo romance oitocentista de José de Alencar) e ‘Ipanema’ (palavra tupi que quer dizer ‘água ruim’, nome tornado mundialmente famoso por causa da ‘Garota de Ipanema’, de Jobim e Vinicius de Moraes) aproxima as duas praias, uma do Rio e a outra do Ceará, e as duas figuras femininas, uma do século XIX, outra do século XX, uma índia, outra branca, uma dando nome a uma praia (a praia de Iracema, em Fortaleza, foi assim batizada em homenagem à personagem de Alencar), outra tomando de uma praia seu nome (a garota de Jobim e Moraes é uma homenagem deles a Ipanema). ‘Viva a mata ta-ta/ Viva a mulata ta-ta-ta-ta é o menos polissêmico dos refrões, mas a possilemia dos outros não é o que justifica sua existência e posicionamento no corpo da canção. Observá-la é apenas um ato de curioso detalhismo a que me dou o direito, por entender que pode ser agradável para quem me leia descobrir algumas das causas das emoções ou sensações que a canção porventura tenha desencadeado. A ‘mata’ e a ‘mulata’, de qualquer modo, são duas entidades múltiplas e, posto que óbvias, misteriosas.



Seria necessária muita paciência (sobretudo do leitor) para estender esse tipo de mirada às estrofes, mais longas e não menos cheias de sugestões. Basta que se diga por agora que essa canção sem nome justificou para mim a existência do disco, do movimento e de minha considerável dedicação profissional que ainda me parecia provisória: era o mais perto que eu pudera chegar do que me foi sugerido por Terra em transe.



Num almoço na casa de não sei quem em São Paulo, ao qual suponho que Mário Schemberg compareceu, me pediram que cantasse algumas das músicas que eu estava gravando. Luís Carlos Barreto, um fotógrafo jornalístico que tinha se tornado produtor de cinema depois de magníficos trabalhos como diretor de fotografia (devem-se a ele as imagens da obra-prima Vidas secas e do próprio Terra em transe), impressionou-se com essa canção (o que é perfeitamente coerente) e, ao ser informado de que ela não tinha título, sugeriu ‘Tropicália’, por causa, dizia ele, das afinidades com o trabalho de mesmo nome apresentado por um artista plástico carioca, uma instalação (na época ainda não se usava o termo, mas é o que era) que consistia num labirinto ou mero caracol de paredes de madeira, com areia no chão para ser pisada sem sapatos, num caminho enroscado, ladeado de plantas tropicais, indo dar, ao fim, num aparelho de televisão ligado, exibindo a programação normal. O nome do artista era Hélio Oiticica, e era a primeira vez que eu o ouvia. Eu naturalmente disse que não, que não poria o nome da obra de outra pessoa na minha música, que essa pessoa poderia não gostar. O que eu não disse, é que esse nome ‘Tropicália’ não me agradara muito, embora a descrição que ele dera da instalação me atraísse. ‘Tropicália’ parecia reduzir o que eu entendia de minha canção a uma reles localização geográfica. A palavra era pregnante, contudo, e nós não a esquecemos. Guilherme Araújo gostou. Manuel Barembein, a quem eu caí na asneira de contar a sugestão feita por Barreto, agarrou-se a esse nome e, para todos os efeitos, enquanto eu não encontrasse um nome melhor, a canção se chamava ‘Tropicália’. Nas caixas de fita, nas fichas de gravação, nas conversas, o nome Tropicália se impôs. O único outro título que me tinha ocorrido – ‘Mistura fina’ – era evidentemente insatisfatório. Tratava-se de uma conhecida marca de cigarro, o que estava de acordo com o método de referências publicitárias – e ainda não era uma expressão tão gasta quanto hoje –, mas a palavra mistura enfraquecia a canção. Como eu não achasse nunca um outro melhor e o disco já estivesse pronto, Tropicália ficou e oficializou-se”



Caetano Veloso em Verdade Tropical