Os vivos do Castelo

Foto: Milton Kaor Nishida/Divulgação

Basta espichar a vista por cima do muro para perceber: a decadência do Castelinho da Rua Apa, na esquina com a Avenida São João, no centro de São Paulo, é de uma obscenidade dolorosa. Construído em 1912, pela família do médico Vicente César dos Reis, o imóvel guarda poucas lembranças dos seus dias suntuosos e das muitas festas para a alta sociedade paulistana. Do lado de fora, a fachada, de pretensa elegância, se vê carcomida por grandes rasgos de tijolos aparentes, como costelas expostas de um corpo qualquer apodrecendo ao relento. No telhado, a lona azul substitui a cobertura que o tempo, há muito, corroeu. As madeiras das portas e janelas estão podres; as grades, enferrujadas. De vivo, há os pombos. E as trepadeiras que descem as sacadas aproveitando cada palmo de parede que o abandono oferece.

Aos 63 anos, Maria Eulina sabe muito bem o que é estar entregue à própria sorte. Hoje, quem a avista de relance nem imagina que aquela senhora baixinha, de fala ligeira e feição decidida, foi moradora de rua. Viúva de um executivo bem-sucedido, ela é o avesso do que, socialmente, convencionou-se chamar decadência. Ainda assim, faz questão de guardar muitas lembranças dos seus dias menos suntuosos. Em 1971, partiu de São José dos Basílios, no interior do Maranhão, onde ficava a fazenda do pai, rumo a São Paulo. Em pouco tempo, se viu desempregada, sozinha e sem ter onde morar. Ao todo, foram 19 meses fazendo do asfalto a cama. E das sobras de comida dos outros o sabor do próprio banquete.

Aparentemente inversos, os caminhos de Maria Eulina e do Castelinho da Rua Apa se cruzaram em 1997. Desde então, é na edícula do imóvel, uma área de aproximadamente 600 m² anexa ao casarão, que funciona a ONG Clube de Mães do Brasil, fundada e presidida pela maranhense. “Quando eu morava nas ruas, olhava para o Castelinho e dizia: ‘Você vai ser a sede do meu trabalho social’”, conta. A instituição oferece cursos profissionalizantes e serviços de apoio, como refeição e abrigo, aos moradores de rua no bairro de Santa Cecília. Muitos, entre eles, ex-detentos e dependentes químicos. Ao entrar para algum projeto da ONG, todos recebem o mesmo aviso: “Eu não quero saber o que você já fez. Mas o que você vai fazer a partir de agora”. Maria Eulina estima ter beneficiado, no mínimo, 70 mil pessoas. “Eu garimpo vidas."

Em geral, o Clube de Mães do Brasil sobrevive da venda de produtos feitos com material reciclado, que ganham forma nas mãos de homens e mulheres assistidos na ONG. Os principais artigos são bolsas e sacolas costuradas a partir de retalhos de tecido, rendas de papel e banners de propaganda. O que antes era lixo chega a ser vendido por até R$ 100 em uma das três lojas da instituição espalhadas pela cidade. “Nosso objetivo é ser economicamente autossustentável”, afirma a maranhense, para quem pedir dinheiro não fazia parte da cartilha nem quando se viu abandonada nas ruas. “A auto-estima cai, ao estender a mão para receber esmola”, argumenta. Que não se confunda, no entanto, com vaidade. Maria Eulina não é de extravagâncias. Veste bermuda jeans, sandália vermelha de couro simples e avental roxo, enquanto trabalha. Estendendo a mão.

Foto: Reprodução/Internet

Restaurar a história de pessoas não é o único desafio dela. Em maio de 1932, o Castelinho foi cenário de um dos crimes mais famosos da cidade, cujas circunstâncias jamais ficaram esclarecidas. De acordo com a versão da polícia, o filho do proprietário do casarão, Álvaro César dos Reis, na época com 45 anos, matou a tiros a própria mãe, Maria Cândida, de 73 anos, e o irmão mais novo, Armando, de 43. Depois, se suicidou com dois disparos. Dois: por mais improvável que possa parecer para um suicídio. O imóvel, que ganhou a pecha de mal-assombrado e engrossou o repertório de lendas urbanas da capital paulista, se tornou propriedade da União em 1987. De lá para cá, nenhuma reforma foi feita. Em 2004, o Castelinho foi tombado. Um patrimônio histórico de São Paulo.

Já com muito preconceitos para combater, Maria Eulina é lacônica quando a conversa tangencia o assunto. Claramente, prefere deixar o episódio dos assassinatos restrito a inquéritos policiais e arquivos de jornais. “Eu me foco na vida”, resume. Falar em fantasmas, gritos no meio da noite ou casa amaldiçoada? Pura baboseira. “O Castelinho nada mais é do que o espaço físico para transformação de histórias.” A transformação física dele mesmo, entretanto, tem sido difícil de gerenciar. O projeto de restauração foi autorizado pelo Conselho Municipal de Preservação do Patrimônio Histórico de São Paulo (Conpresp) em 2011 e, desde então, o Clube de Mães do Brasil procura investidores privados para viabilizar a reforma, estimada em R$ 3 milhões. A previsão é que as obras tenham início a partir de março de 2014. Até lá, permanecem as trepadeiras volumosas e os pombos. De vivo, pelo menos.

A liberdade de Midori Aoshima

Quando Midori Aoshima frequentava a escola no Japão, o país estava a caminho da Segunda Guerra Mundial. Entre as lembranças da sala de aula, não sai da memória a vez em que a professora perguntou: “O que vocês querem ser quando crescer?”. Prontamente, os colegas de classe se envaideceram. “Quero ser piloto de avião.” “Eu vou fabricar armas.” “Fazer engenharia naval é o meu sonho.” Pouco contagiado pela euforia bélica daquele momento, Aoshima disse com sinceridade: “Quero ser pintor”. Recebeu dez chicotadas de castigo.

Hoje um senhor de 80 anos, Midori Aoshima mantém a voz mansa enquanto conversa. Fala baixinho, quase num sussurro, um português de poucas palavras que, não raro, troca o L pelo R, né?!, como fazem os humoristas imitando os imigrantes japoneses. Desde os 23 anos, Aoshima vive no Brasil bem distante de qualquer conflito de ordem militar. Se por capricho do destino viesse a rever a tal professora, certamente ouviria que ele é uma causa pedagógica perdida. Nas mãos, nada de armas: apenas tinta e pincel. Instrumentos que utiliza para dar expressão a talhas de madeira, confeccionando peças de artesanato japonês.

Dificilmente, o lugar onde Aoshima expõe seu trabalho poderia ter um nome melhor. Liberdade, a praça no centro de São Paulo famosa por ser um reduto da cultura oriental no Brasil. Aos sábados e domingos, o local é tomado por 50 barracas coloridas de vermelho e branco, que oferecem de souvenir exótico à comida típica daquelas bandas de olhinhos puxados. Em uma delas, Aoshima aguarda, pacientemente recostado na cadeira, quem admire - e compre - o que sabe fazer de melhor: Kokeshi e Daruma.

Kokeshi é uma bonequinha de tradição milenar que, segundo se acredita, traz sorte às famílias. Ela não tem braço nem perna. Apenas o tronco cilíndrico e a cabeça desproporcionalmente crescida. Aoshima fabrica mais de trinta modelos diferentes, enfeitando-os sempre com cores vivas e caracteres kanji, aqueles símbolos incompreensíveis do alfabeto pictórico japonês. Um trabalho minucioso, que requer bastante precisão para pintar todas as linhas, bem fininhas, na medida certa.

O Daruma, um rosto de olhos opacos, talvez seja ainda mais interessante. Ele funciona da seguinte forma: pinta-se um dos olhos depois de fazer um pedido, o outro permanece sem cor até que o desejo se realize. “Caia sete vezes, levante oito”, diz o provérbio que o inspirou, em clara referência à ideia de não medir esforços diante de um objetivo traçado.

Mas nem sempre Aoshima conseguiu viver de artesanato. Inicialmente, ele veio ao Brasil para trabalhar numa empresa japonesa, que faliu um ano e meio depois. Contudo o desprezo pelo fracasso - um dos insistentes traços orientais - o impediu de retomar o caminho da antiga casa. “Tive vergonha de voltar, né?!”, conta sem muito constrangimento. De lá para cá, recorreu à lavoura, deu expediente na indústria, encontrou um jeito ou outro de sobreviver. Também se casou com uma brasileira, com quem teve três filhos. Aoshima nunca mais pisou no Japão.

Há cinco anos na Feira da Liberdade, o artesão aproveita a aposentadoria para realizar o desejo da juventude. É, depois de tudo, um desobediente ou um perseverante, dependendo do ângulo em que se olha: de professor ou de Daruma. Mas que soube retribuir
oferecendo a possibilidade de cada um - ao pintar um naco de madeira ou um simples olhinho - poder escolher o que bem entender.