Coisas da vida



Muitas vezes me pego, inclusive aqui nesta crônica preguiçosa, pensando nas coisas da vida. De como ela – angústia de quem escreve e fim de quem entende –, do alto de sua dupla personalidade, se revela tanto no girassol que rasga a calota polar, quanto nas penas do urubu, em cuja sombra aguarda o náufrago moribundo. E que guarda, no imprevisível, sua graça. Sei que na lista de pulhas, que essa ardilosa concubina universal me reserva todos os dias, um dos itens que mais me faz estrebuchar de agonia diz respeito aos chamados semi-conhecidos.
Pior do que tia-avó surda em bingo de natal. Mais chato que torcedor que assiste ao jogo, no bar, sem desligar o radinho. O semi-conhecido é aquela pessoa que você sabe quem é (independentemente de identificar pelo nome), sabe que ele também reconhece você; mas que nunca – nunca! – dividiram um aperreio ou trocaram meia ideia sequer. Nem anônimo, nem colega. Ele pode ser o amigo de um amigo ou a manicure que batia na sua casa para empurrar as novidades da Avon para sua mãe. Em geral, são as figurinhas que entopem as sugestões do Facebook e do Twitter: “Talvez você conheça”. Conheço, e faço questão de não adicionar.
O problema é que ainda não foi descoberta uma forma socialmente adequada para lidar com eles. Imagine que você está em um ônibus quase cheio – exceto pela cadeira justamente do seu lado – quando, na parada, sobe uma única criatura. Logo quem? Aquele bicho que o adicionou no MSN, só para pegar umas dicas sobre sua irmã e, desde que levou um fora dela (há uns três anos, talvez), fica boiando na inércia da lista de contatos.
De cara, o inconveniente: você já viu que ele entrou, ele também já viu você. Os dois fingem que não, claro. Você cola, imediatamente, o nariz na janela e espera, com o ouvido tinindo, até o momento de ele se aproximar (intervalo extremamente aflitivo, diga-se). Quando a pisada fica mais forte, você dá uma viradinha e segura um micro-segundo. O mundo para por um instante. A partir daí, tudo se dá muito rápido. Pode acontecer de o bonitão simular que só te avistou agora e esboçar um contato: acena com a cabeça ou solta um grunhido educado – para viking nenhum botar defeito – no lugar do “e aí, meu irmão?!”. Ou ambos. Se você tiver mais sorte, o caba nem fala, passa direto, e todos vivem felizes para sempre.
Agora, a hipótese mais hedionda se materializa justamente quando bate olho no olho: o cidadão abre um sorriso do tamanho do Império Romano (e tão verdadeiro quanto o loiro de Preta Gil) e senta bem do seu lado. Não tem mais jeito. Primeiro, não dá mais para fingir que não sabe quem é; segundo, está estabelecida a obrigação da conversa; terceiro, tirando sua irmã, você não sabe que porra de assunto interessa ao cara. Nem o mais eficaz anjo da guarda pode tirar você dessa. Depois que passam as perguntas fáceis (tudo bom? tá indo pra onde? qual é teu curso?), um silêncio mais constrangedor que dedo de proctologista vai ganhando corpo. Olhar para o chão nunca foi tão interessante. Nem sua parada, tão distante.
Mas pior mesmo do que semi-conhecido, somente dor de barriga longe de casa. O sofrimento gerado pela sensação de ter um gato enlouquecido arranhando por dentro, junto ao fato de você ser completamente incapaz de expulsá-lo, ao menos que esteja sentado no trono do seu próprio lar. O suor começa a empapar o pescoço, a palidez vai se estampando no rosto. E sempre chega um camarada prestativo para, de pronto, perguntar se está tudo bem. “Claro que sim”, responde-se, invariavelmente, com a cara de quem foi obrigado a mastigar uma catita.
É nessas horas que desejo ser a rainha da Inglaterra ou até mesmo a filha de uma dupla de cantores sertanejos (falo “dupla”, porque nunca sei qual é o pai). Já que, ao que parece, elas nunca tiveram que passar pela via crucis que é precisar se aliviar e não poder (ainda que uma delas curta certas atividades na região em questão, o “sentido da coisa”, por assim dizer, é inverso). Quando, enfim, o lance aperta – o estômago se retorce, vem a rajada de desespero – você precisa, a qualquer custo, segurar a onda lá embaixo. Até o ponto de achar que não vai conseguir. Aí, ninguém mais consegue disfarçar a angústia.
Na primeira oportunidade, reúno meus calafrios, saio correndo e entro no primeiro busão que passar. Direto pra casa. O horário nunca é bom, e ele está quase lotado. Por sorte, há ainda um único lugar disponível. Acerto o passo com perícia, para não me desfazer ali mesmo, e vou sentar. Bem do lado da menina para quem mandei a primeira cartinha de amor, na alfabetização...

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