A primeira crônica

Já de novo no laboratório, encerro um itinerário por corredores estreitos e escadas escuras. Os meio-andares do CAC desfilam um tom blasé que contrasta com todo o resto. Beberico minha água; custou-me um real lá fora. Na realidade estou adiando o momento de escrever.

Talvez, a perspectiva me assuste. Preciso descobrir uma crônica em até oitocentas palavras. Tenho que fazer agora. Resmungo. Oitocentos é um bocado. As barraquinhas não vendem idéias, só água. Se passar de seiscentos, já dá. Tudo bem... não parece tanto. É um bocado. Quantos tempos cabem em oitocentas palavras? Sei que deveria caber o meu. E é preciso que caiba agora. O agora.

Gostaria mesmo de estar inspirado. Pior que, diante da obrigação de produzir, as horas tomam nanoproporções. Se ainda fosse notícia, que a gente cultiva e colhe... crônica é diferente. Ela que encontra a gente. Ter que escrever faz com que eu sangre. Feito Aquiles, mortalmente ferido, não; mas, efeito inverso, qual fêmea em trabalho de parto. Por isso bebo. Faço de esquecido que delongar o inevitável é construir o prolongamento da angústia. A cada gole d’água, sangro mais um pouco. Lentamente; gotejando. Um gole, uma gota; um gole, uma gota. O tempo é meu calcanhar.

A fórmula conheço, sim: “buscar o pitoresco ou o irrisório no cotidiano de cada um”. Foi-me ensinado por quem sabe. Melhor, foi-me passado; ensinado é para outra coisa. “Recolher da vida diária algo de seu disperso conteúdo, que nos envolve em convivência”. Engraçado como é bem mais fácil na boca dos grandes, e não quando fica revirando aqui dentro. Precisando sair. Não sou bom em pescar metonímia. Na beira do cais, deixo o anzol sob os meus pés ou o lanço ao horizonte? Quem souber que fale agora. Ou que fale o agora. Tomo mais um gole.

Não é possível ser tão difícil. O circunstancial, o episódico, dá de cacho. Podia, muito bem, falar do pedinte – em nome de uma instituição muitíssimo séria, da qual nunca ouvi falar – que me chamou mau-caráter no ônibus. Ou da babá negra que leva diariamente, de mãos enlaçadas, a criança loira para a escola. Todos os dias, alguém morre de inanição na Namíbia, um velho-novo escândalo pipoca no Congresso e um pobre comemora aniversário espetando três velas minúsculas em uma fatia simples de bolo amarelo-escuro. Não quero falar de nada disso. Definitivamente, não sou Fernando Sabino e estou sem assunto. E minha água acabou.

O sangue, no entanto, continua gotejando. Preciso fazer alguma coisa. Vou dar uma volta na sala, a fim de não deixar escapar a esperança de ver descer o texto. Meio assim, como quem anda para fazer digestão. Mas também, em meu infortúnio, não sou Chico Xavier. Ao fundo do laboratório, outros estudantes, com a mesma atribuição que a minha, se dedicam à atividade. Narrar. São mãozinhas frenéticas que marcam o teclado; compondo o som da inspiração. Só que dos outros. No meu teclado, pois, é a minha mão que precisa ditar a música. E ela só espera. Muda.

Seria injusto, entretanto, reclamar solidão ao sofrimento. Há também os que encaram a tela do computador esperando que a descarga de elétrons, que ali se desmancha em imagens, carregue o sopro da inspiração. Mesmo eles, tão iguais, não me pungem. Por desespero final, lanço um último olhar para fora de mim, onde deveriam viver os assuntos que merecem uma crônica. Deveriam. A saída, se é que se pode chamar assim, é olhar para dentro. De onde, como ampulheta, não pára de pingar.



O fluxo tingiu o relógio de vermelho. Quando meu tempo já tiver ido; no agora, serei minhas palavras. Assim eu quereria minha primeira crônica. Não dá para ser pura, enquanto não me livro de mim mesmo.

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