“Decide-me: Brasília, sem ser nomeada, seria o centro da canção-monumento aberrante que eu ergueria à nossa dor, à nossa delícia e ao nosso ridículo.
Bem, pelo menos era assim que eu sentia as coisas no paroxismo da inspiração. A canção real que consegui fazer me entusiasma muito menos do que a imagem difusa que eu fazia dela quando ela era apenas uma possibilidade. Mas ela exerceu forte impacto no ambiente de música popular e em muitas cabeças interessantes no Brasil – e rendeu estudos acadêmicos em que foi chamada repetidas vezes de ‘alegórica’. E conheceu considerável sucesso popular.
O arranjo dessa canção ficou a cargo de Júlio Medaglia. Eu tinha distribuído o repertório do disco entre os três maestros da ‘música nova’ de São Paulo que se aproximaram de nós: Medaglia, Damiano Cozzella e Sandino Hohagen. Rogério Duprat – na verdade o mais interessante deles – chegara um pouco depois e, a partir de ‘Domingo no Parque’, tinha ficado mais ligado a Gil. No dia da gravação da base orquestral dessa música, apesar de ser para mim a mais representativa, era a única que não tinha título, o baterista Dirceu, que nada sabia sobre o que tratava a letra que só seria gravada depois, ao ouvir a introdução em que sons percussivos, cantos de pássaros e intervenções do naipe de metais se superpunham, lembrou-se da carta de Pero Vaz de Caminha descrevendo a paisagem brasileira no momento do descobrimento. A gravação que foi aproveitada contém o discurso que Dirceu improvisou de pura gozação, sem imaginar que já se estava gravando, e muito menos quão adequada era sua falação ao tema tratado na letra. ‘Quando Pero Vaz de Caminha descobriu que as terras brasileiras eram férteis e verdejantes, escreveu uma carta ao rei: tudo o que nela se planta, tudo cresce e floresce e’, numa referência ao técnico de som Rogério Gauss que comandava a mesa de gravação, ‘o Gauss da época gravou!’, ouve-se Dirceu dizer antes que eu entre com os primeiros versos instauradores do panorama em que se desenrolará a construção da visão algo cubista:
Sobre a cabeça os aviões
Sob os meus pés os caminhões
Aponta contra os chapadões
Meu nariz
Eu organizo o movimento
Eu oriento o carnaval
Eu inauguro o monumento no planalto central do país.
A canção, longa, depois de passar pela imagem de uma ‘criança sorridente, feia e morta’ que ‘estende a mão’ de sobre os joelhos do ‘monumento’, por uma ‘piscina com água azul de Amaralina’ e pelos ‘cinco mil alto-falantes’ que ‘emitem acordes dissonantes’ (sempre intercortada por um refrão musicalmente fixo mas de letra variável, dando vivas a pares de rima primária e contiguidade desconcertante, como ‘Viva a bossa sa-sa/ Viva palhoçaça-ça-ça-ça’, ‘Viva Maria iá-iá/ Viva a Bahia iá-iá-iá-iá’, ‘Viva Iracema ma-ma/ Viva Ipanema ma-ma-ma-ma’), termina por arrematar o grito de Roberto Carlos ‘que tudo mais vá pro inferno’ com um ‘Viva a Banda da-da/ Carmen Miranda da-da-da-da!’. Claro que a frase mais famosa do Rei Roberto, seguida da Banda do Chico e do nome de Carmen Miranda (cuja última sílaba repetida evocava o movimento dadá e, pra mim, misturava seu nome ao de Dadá, a famosa companheira do cangaceiro Corisco, estes dois últimos personagens reais e figuras centrais de Deus e o Diabo na Terra do Sol), dava, de forma elíptica mas imediatamente perceptível por qualquer brasileiro que ouvisse canções (nunca foram poucos), uma reestudada geral na tradição e no significado da música popular brasileira. Mas cada refrão tinha sua constelação de sugestões ou referências. Além da ‘bossa’ noelina e nova e elisreginianamente televisiva colada à ‘palhoça’ temos o nome do filme Viva Maria, de Louis Malle (Brigitte Bardot era uma presença feminina muita mais constante em minha mente do que a de Marilyn, como já disse), um filme sobre mulheres e revolucionários na América Latina, seguido de ‘iá-iá’, que é o modo como os negros da Bahia (que é a palavra que se segue no refrão) sempre chamaram suas patroas ou donas, assim como toda mulher que lhes fosse superior, uma vez que iá é ‘mãe’ em iotuba; depois o par ‘Iracema’ (um anagrama de América, nome da índia que é a personagem central e título do belo romance oitocentista de José de Alencar) e ‘Ipanema’ (palavra tupi que quer dizer ‘água ruim’, nome tornado mundialmente famoso por causa da ‘Garota de Ipanema’, de Jobim e Vinicius de Moraes) aproxima as duas praias, uma do Rio e a outra do Ceará, e as duas figuras femininas, uma do século XIX, outra do século XX, uma índia, outra branca, uma dando nome a uma praia (a praia de Iracema, em Fortaleza, foi assim batizada em homenagem à personagem de Alencar), outra tomando de uma praia seu nome (a garota de Jobim e Moraes é uma homenagem deles a Ipanema). ‘Viva a mata ta-ta/ Viva a mulata ta-ta-ta-ta é o menos polissêmico dos refrões, mas a possilemia dos outros não é o que justifica sua existência e posicionamento no corpo da canção. Observá-la é apenas um ato de curioso detalhismo a que me dou o direito, por entender que pode ser agradável para quem me leia descobrir algumas das causas das emoções ou sensações que a canção porventura tenha desencadeado. A ‘mata’ e a ‘mulata’, de qualquer modo, são duas entidades múltiplas e, posto que óbvias, misteriosas.
Seria necessária muita paciência (sobretudo do leitor) para estender esse tipo de mirada às estrofes, mais longas e não menos cheias de sugestões. Basta que se diga por agora que essa canção sem nome justificou para mim a existência do disco, do movimento e de minha considerável dedicação profissional que ainda me parecia provisória: era o mais perto que eu pudera chegar do que me foi sugerido por Terra em transe.
Num almoço na casa de não sei quem em São Paulo, ao qual suponho que Mário Schemberg compareceu, me pediram que cantasse algumas das músicas que eu estava gravando. Luís Carlos Barreto, um fotógrafo jornalístico que tinha se tornado produtor de cinema depois de magníficos trabalhos como diretor de fotografia (devem-se a ele as imagens da obra-prima Vidas secas e do próprio Terra em transe), impressionou-se com essa canção (o que é perfeitamente coerente) e, ao ser informado de que ela não tinha título, sugeriu ‘Tropicália’, por causa, dizia ele, das afinidades com o trabalho de mesmo nome apresentado por um artista plástico carioca, uma instalação (na época ainda não se usava o termo, mas é o que era) que consistia num labirinto ou mero caracol de paredes de madeira, com areia no chão para ser pisada sem sapatos, num caminho enroscado, ladeado de plantas tropicais, indo dar, ao fim, num aparelho de televisão ligado, exibindo a programação normal. O nome do artista era Hélio Oiticica, e era a primeira vez que eu o ouvia. Eu naturalmente disse que não, que não poria o nome da obra de outra pessoa na minha música, que essa pessoa poderia não gostar. O que eu não disse, é que esse nome ‘Tropicália’ não me agradara muito, embora a descrição que ele dera da instalação me atraísse. ‘Tropicália’ parecia reduzir o que eu entendia de minha canção a uma reles localização geográfica. A palavra era pregnante, contudo, e nós não a esquecemos. Guilherme Araújo gostou. Manuel Barembein, a quem eu caí na asneira de contar a sugestão feita por Barreto, agarrou-se a esse nome e, para todos os efeitos, enquanto eu não encontrasse um nome melhor, a canção se chamava ‘Tropicália’. Nas caixas de fita, nas fichas de gravação, nas conversas, o nome Tropicália se impôs. O único outro título que me tinha ocorrido – ‘Mistura fina’ – era evidentemente insatisfatório. Tratava-se de uma conhecida marca de cigarro, o que estava de acordo com o método de referências publicitárias – e ainda não era uma expressão tão gasta quanto hoje –, mas a palavra mistura enfraquecia a canção. Como eu não achasse nunca um outro melhor e o disco já estivesse pronto, Tropicália ficou e oficializou-se”
Caetano Veloso em Verdade Tropical
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