Grato a Ortega y Gasset pelo esclarecimento


Trata-se de uma questão de óptica extremamente simples. Para ver um objeto, precisamos acomodar de certo modo o nosso parelho ocular. Se a nossa acomodação visual é inadequada, não veremos o objeto ou o veremos mal. Imagine o leitor que estamos olhando um jardim através do vidro de uma janela. Nossos olhos se acomodarão de maneira que o raio da visão penetre o vidro, sem deter-se nele, e vá fixar-se nas flores e folhagens. Como a meta da visão é o jardim e até ele é lançado o raio visual, não veremos o vidro, nosso olhar passará através dele, sem percebê-lo. Quanto mais puro seja o vidro, menos o veremos. Porém logo, fazendo um esforço, podemos prescindir do jardim e, retraindo o raio ocular, detê-lo no vidro. Então o jardim desaparece aos nossos olhos e dele só vemos uma massa de cores confusas que parece grudada no vidro. Portanto, ver o jardim e ver o vidro da janela são duas operações incompatíveis: uma exclui a outra e requerem acomodações oculares diferentes.

Do mesmo modo, quem na obra de arte procura comover-se com os destinos de João e Maria ou de Tristão e Isolda e nele acomoda a sua percepção espiritual, não verá a obra de arte. A desgraça de Tristão só é tal desgraça e, consequentemente, só poderá comover na medida em que seja tomada como realidade. Porém, o caso é que o objeto artístico só é artístico na medida em que não é real.

(...)

Isso é uma deslealdade – diria um artista atual. Isso é prevalecer-se de uma notável fraqueza que há no homem, pela qual ele costuma contagiar-se da dor ou da alegria do próximo. Esse contágio não é de ordem espiritual, é uma repercussão mecânica, como o arrepio nos dentes que produz o riscar de uma faca sobre um vidro. Trata-se de um efeito automático, nada mais. Não vale confundir cócegas com o regozijo. (...) A arte não pode consistir no contágio psíquico, porque este é um fenômeno inconsciente e a arte deve ser toda plena claridade, meio-dia de intelecção. O pranto e o riso são esteticamente fraudes. O gesto da beleza não passa nunca da melancolia ou do sorriso. E melhor ainda se a isso não chega. (...)

Não sei, não; mas creio que o poeta jovem, quando poetiza, se propõe simplesmente ser poeta. (...) Vida é uma coisa, poesia é outra – pensam ou, ao menos, sentem. Não misturemos os dois. O poeta começa onde o homem acaba. O destino deste é viver seu itinerário humano; a missão daquele é inventar o que não existe. Desta maneira se justifica o ofício poético. O poeta aumenta o mundo, acrescenta ao real, que já está aí por si mesmo, um irreal continente. Autor vem de auctor aquele que aumenta. Os latinos chamavam assim ao general que ganhava para a pátria um novo território.

- Ortega y Gasset em A desumanização da arte

learnin' the blues



a Luiz Humberto e Nelsinho

Deu a hora: minhas pálpebras maldiziam as lâminas de sol que atravessavam sem esforço a persiana remendada. Sempre adivinho o pior lugar da cama para desabar no sono e agora toda aquela luz já havia me furado a cabeça. Por impulso natural, apertei ainda mais os olhos. A boca-semiárido, a saliva dura na ponta do lábio, reclamava água de um jeito estúpido, quase tímido, quase ordem, que só quem já tomou alguns porres de uísque sabe como é.

Quando resolvi me levantar, por pouco não fui de encontro ao chão. O pé direito, de inchado, mais parecia um anfíbio fora de catálogo; corte alongando-se do quarto dedo à base do calcanhar. Bem feio, avalio, mas não aparenta ser muito profundo – menos mau. Porra, essa casa está uma zona, cadê a minha roupa?! Desde que a cintura não consegue acompanhar o cós ando perdendo as peças pela sala. Pelo menos para isto serviu o pé: esquecer a dor de cabeça. Avisto um pano sujo, manchas escuras e vermelhas; sequer me lembro de o ter usado para estancar o sangue.

O calcanhar ajudou a vencer os passos até o banheiro com certa facilidade, embora se esquivar de garrafas vazias e maços de cigarro amassados não seja propriamente uma diversão. Preciso lavar esse corte, urgente. Tentei mover a válvula da pia no sentido anti-horário. Não adiantou. Fiz o contrário, a resposta foi um suspiro grotesco. Seco. Acho que cortaram a água nesta manhã, não tenho certeza. Mais tarde penso em como buscar um pouco lá no ribeirão – recôndito menino de pesca, onde gastava meus finais de semana com os primos –, quem sabe assim também molho o cabelo – o balde, salvo engano, reza o sono dos justos no azulejo frio da despensa. Depois eu vejo se continua lá. Com sorte, aproveito ainda para comprar gasolina no caminho e vê se aquela lata velha volta à vida.

Nessa casa não há espelhos, ninguém explica como cabia tanta gente aqui. Tenho que sair dessa: até quando meu dinheiro duraria no turismo predatório de lesbos, as franjas douradas de praia?! Especulei duas semanas. Depois foi só eu ter passado uns dias com o abreu, transferido pela agência para o amapá, lembram?! Não quis incomodar com correspondências, as conexões são sempre ruins, vocês sabem, as tarifas desumanas. Claro que não lembram, mas acreditam. Por que não? Aqui na sala parece noite, o relógio de parede marca 4h17, mas furtei-lhe as pilhas assim que cheguei. Dormiram acesas as luzes, bom que não cortaram ainda. A vitrola, modelo setecentos e três, tocando um chiado fim de disco, deve ter passado a noite ligada. Na verdade, recavei um sinatra no depósito em meio a toneladas de desprezo. Desde então, acompanho learnin’ the blues ao piano vertical e afinado, dizem ter sido da minha bisavó. Morreu por complicações de bronquite, mamãe jovem. The tables are empty, the dance floor’s deserted. É desafiador tocar blues com o fá sustenido quebrado. The cigarrettes you light, one after another. O que não compromete o fato de ter sido a única coisa aproveitável nessa casa – afora o estéreo e o disco, claro. When you feel your heart break, you’re learnin’ the blues.

Minha preferência desde cedo, quanto mais instrumental melhor. O piano, a guitarra, o trompete cantam em linguagem universal. Aprendi a ouvir choro com ela, música de morro, música de gente de verdade, defendia. Cheguei a achar palatável, mas a cafonice comprometia o conjunto. Vindo de rico ou de pobre, meu coração, não sei por que, bate feliz quando te vê é literariamente equivalente a batatinha quando nasce se esparrama pelo chão. Corruptela, sempre digo, o correto é espalha a rama. Quem esparrama é uísque. O copo, não: estilhaça. Despencou durante a dança que continuei dançando. Eu, esnobe; ela, altruísta, dez anos mais nova. Eu com ela; ela sem mim. Nada restou daquilo, apenas o lenço turco, seda pura, rendinha bordada à mão, que usou por meses e meses. Guardei na gaveta de casa antes de ir embora sem deixar ninguém se despedir de mim.

Estacionei o santana noventa e quatro na esquina da praça, a poucos metros da saída de um colégio qualquer. Aguentou uma centena e meia de quilômetros sem reclamar. Não removi da ignição a chave. Lanço a cabeça para trás, pelos da nuca eriçados. Conferi as janelas fechadas, acendo o primeiro cigarro com a mão direita, enquanto a esquerda se ocupa do resto. Até quando vão se esquecer de trocar essa película carcomida?! Iam saindo uma a uma. Meninotas empinadas de saias jeans abaixo do joelho e camisa de poliéster ordinário, lançando-me ao desafio de adivinhar-lhes o desenho dos sutiãs. Os peitinhos pubescentes, como mandacarus aflorando na seca, diria gonzaga, ganhando a rua esquecidos da fome. Procurei um olhar semelhante que fosse. A diferença é que naquelas não cairiam bem vestidos longos, möet-chandon, valsas à meia-noite. Ar-condicionado quebrado, mormaço absurdo, alguém podia me ver através da fumaça?! Foda-se. Ainda que movesse uma multidão a plateia, as tomaria em pé ali mesmo, sob o pretexto de pôr-lhes ordem, já redimido do pecado. E riam, incontidas e nervosas: te mando a conversa; por favor não conte nada a ninguém; qualquer coisa pode dizer que estava lá em casa. Assim não, querida. Não me deixe tão facilmente, trancado nesse carro velho, dedos cerrados, tentando acomodar-me sob o tapete mofado.

Acendo o primeiro cigarro. O silêncio absoluto – nossa casa de campo sempre foi um reduto sem vizinhos –, possibilita-me escutar o crepitar do fumo. Exemplar operário o fogo, calcinando anéis de carbono em esculturas de escombros. Eduquei-me a fumar sem me desfazer das cinzas, porque precisam cair sozinhas. Certa vez, vi-as manter-se quase até o filtro. Era secundarista, nem suspeitava do palato inflamado. Mamãe reclama a toda hora. Meu pai, tabagista irredutível, não resistiu à primeira trombose coronária. Acendo o segundo, o terceiro; o quarto manchado de sangue. Um escroto, o velho. Mandou-se a estudar os apinayé, às margens do araguaia – eles aferem a temporalidade por referências a parentes mais velhos; não há uma medida orgânica do tempo, entendeu, garoto? Eu dizia que sim, pouco importava. Tempo era o que ele perdia demais com as alunas, enquanto mamãe cuidava das avencas, do açúcar para as formigas e do meu irmão. Não me lembro de tê-los visto trocando uma sílaba acima do tom. Ela nunca fez amigos. Ainda hoje serve a mesa com quatro pratos.

Se davam bem as duas, por mais improvável que seja. Mamãe não é do tipo que se compra com simpatia, sou capaz de apostar que foi por ela ter ajudado a aprontar bolo de noiva e lolitas para o natal do condomínio. Me dá nos nervos essa impaciência de sinatra esperando meu primeiro acorde. Celebridade é sempre prepotente. É verdade, desde aquele natal fazia vista grossa para as muitas ideias, a camisa folgada, orelha sem brinco. Ela tinha fome de beauvoir e chegou até a envolver-se com o movimento estudantil. Uísque direto da garrafa, os vidros restaram sobre o carpete. Ela não cansava de repetir que não sei quem dizia que o suicídio é a única questão filosófica verdadeiramente séria. Você não foi séria, meu bem.

Quer saber, saudade – também choram os galegos e os árabes, povos de incansável fraqueza – é palavra maldita, abomino tanto quanto os congressos de literatura regional. Saram rápido as feridas do sapo: já posso até limpar esse pano imundo no meu pé. Casamento marcado para julho, mês de imperador. Tudo ok com o capelão, convites aromatizados, buffet, conceito minimalista, essas modinhas gastronômicas, caralho a quatro. O sorriso piegas, porque sempre, encantava-me, porque desconhecidos os destinos a que nos reserva. O quão melhor seria se você sofresse – me traria mais força. Quem sabe me permitisse até sentir um pouco de pena: o mínimo de pena que pessoas socialmente saudáveis são capazes de se fazer sentir. Você, não. Muito corajosa, podia aguentar sempre sorrindo. Eu abandonei sant’anna na estrada – e ela não voltou em três dias. Aquela droga de sorriso, um oceano inteiro, arruinava tudo! Sempre nauseantemente maior que os problemas, maior que o mundo.

The tables are empty, the dance floor’s deserted. Foram incontáveis jantares sem sal, até o mielograma finalmente indicar a ausência completa de linfoblastos. The cigarrettes you light, one after another. E ela durou apenas dois meses. Lembra-se do primeiro médico ter dito que era uma apendicite?! When you feel your heart break, you’re learnin’ the blues. As gardênias substituíram o véu sem grandes prejuízos estéticos, devo admitir, ainda que fosse uma péssima escolha. Vai agradecer ao quê, filha da puta?! Avisei à família para não lhe dar ouvidos. Responderam que era desejo, não há o que fazer. Desejo?! E quem pode escolher o quê nessa vida?

No fim das contas, você desistiu na hora errada. Desculpa, você sabe como eu fico quando bebo. Uma rosa é uma rosa é uma rosa, não adianta, amor, tem razão. A garganta arde, aqui escurece muito cedo. Arrependo-me de não ter trazido comigo o lencinho. Faltou coragem de queimá-lo junto às fotografias, sabe?! Restam três garrafas, depois não sei o que acontece. Nunca mais – ouça bem –, nunca mais o solto por nada, nada, nada. E não sou de esquecer nenhuma promessa, viu?! A dedicatória aos nossos filhos, uma menina e um menino: como combinamos que seria.

VIII

É a mesma ruazinha sossegada,
Com as velhas rondas e as canções de outrora...
E os meus lindos pregões da madrugada
Passam cantando ruazinha em fora!

Mas parece que a luz está cansada...
E, não sei como, tudo tem, agora,
Essa tonalidade amarelada
Dos cartazes que o tempo descolora...

Sim, desses cartazes ante os quais
Nós às vezes paramos, indecisos...
Mas para que?... Se não adiantam mais!...

Pobres cartazes por aí afora
Que nada anunciam: - ALEGRIA – RISOS
Depois do Circo já ter ido embora...


Quintana

Heroísmo, pirilampos, wafer de abacaxi e outras coisas da mesma ordem de importância


Em alguns lugares pelos quais viajei, descobri que certas culturas não se sentem totalmente confortáveis com o termo "herói", para começar. A Austrália e a Alemanha são dois países em que as culturas parecem ligeiramente "herófobas".

Os australianos desconfiam dos apelos da virtude heroica porque esses conceitos foram usados para seduzir jovens australianos a lutarem nas batalhas britânicas. Os australianos têm seus heróis, é claro, mas estes tendem a ser discretos e recatados, e mantêm-se relutantes por muito mais tempo do que os heróis de outras culturas. Como a maior parte dos heróis, eles resistem aos chamados à aventura, mas continuam adiando a decisão e podem nunca se sentir à vontade sob o manto do heroísmo. Na cultura australiana é indecente buscar a liderança ou os refletores, e qualquer um que o faça é considerado um "canguru espalhafatoso" e deve ser ignorado. O herói mais admirável é aquele que recusa seu papel heroico enquanto for possível e que, como Mad Max, evita aceitar responsabilidades que não sejam as suas próprias.

A cultura alemã parece ambivalente em relação ao termo "herói". O herói tem uma longa tradição de veneração na Alemanha, mas duas Guerras Mundiais, o legado de Hitler e dos nazistas macularam este conceito. O nazismo e o militarismo alemães manipularam e distorceram os poderosos símbolos do mito do herói, evocando suas paixões para escravizar, desumanizar e destruir. Como qualquer sistema arquetípico, como qualquer filosofia ou credo, a forma heroica pode ser distorcida e utilizada com grande efeito em intenções malévolas.

No período pós-Hitler, a ideia do herói foi colocada em repouso, enquanto a cultura reavaliava a si mesma. Os anti-heróis moderados e insensíveis estão mais em harmonia com o espírito alemão atual. Há hoje em dia um tom de realismo despojado de sentimentalismo que é mais popular, embora sempre haja rompantes de romantismo e de amor pela fantasia. Os alemães podem se divertir com os contos de heróis imaginativos de outras culturas, mas não parecem à vontade com os heróis românticos de seu próprio território, por enquanto.


- Christopher Vogler, em "A jornada do escritor"

Hoje não ouço ainda as vozes daquele tempo


Do vão da porta, a vozinha aguda bate asas,
Tchau, gente...”
Reacendida a cada eco de resposta – de adultos, tão ali, pequeninos;
Faz ganhar-te as ruas a repetir deliciada,
 “Tchau, gente!”

Aproveita, pretinha, enquanto podes segurar todos os teus anos em uma mão

No resto do dia, são emprestadas da paciência de agiota tuas palavras,
– e não do acaso a graça – és de precisão inabalável
Qual taxi é tácique, e macarrão é camarrão

Em quantas sobras de tardes mimadas ainda serás só cisma sobre mundos sãos,
Posto que, enquanto miúda, aguardas breve, nessa vida que te embala em mil.
Hoje sabes ser fogo, fogo; água, água. E, mais na frente, o que saberás ser?

Tchau, gente!”
Frases revoadas; o som bordado no sutil das coisas boas cambalhota cá no peito:
Vem subindo, desbravando a garganta – feito mariposa a debater-se no vidro

Escancara-se, então, em largos lábios... Em dentes vários, seguramente silenciosos
Assimetricamente distribuídos,
Ninado, enfim, na escuridão gostosa dos meus olhos cerrados,

– dos quais nem desconfias –

Mas completamente fechados
Como janelas postadas apenas para não deixar ir embora o menor sopro de alegria

entre-silêncios, a linha

é fácil comprovar a autenticidade de uma notícia, e um jornalista livre deve pôr nisso toda a sua atenção porque,"Se não pode dizer tudo o que pensa, pode deixar de dizer o que não pensa e aquilo que acredita falso". E afirma: “Cette liberté toute négative est, de loin, la plus importante de toutes, si l’on sait la maintenir” - ou: “Essa liberdade negativa é, de longe, o mais importante de tudo se soubermos mantê-la”

- Camus (porque nunca é demais) por Reinaldo Azevedo

na íntegra:
http://veja.abril.com.br/blog/reinaldo/geral/camus-e-um-texto-sobre-liberdade-de-imprensa-escrito-ha-73-anos-ela-sentia-o-fedor-que-emanava-do-jeg/

A sete palmos, as palavras

"Provavelmente seja verdade que um homem permanece eternamente desconhecido para nós e que nele há sempre algo de irredutível que nos escapa. Mas eu conheço na prática os homens e os reconheço em sua conduta, no conjunto de seus atos, nas consequências que sua passagem suscita na vida. Da mesma maneira, todos esses sentimentos irracionais sobre os quais a análise não sabe agir, posso defini-los na prática, apreciá-los na prática, reunindo a soma de suas consequências na ordem da inteligência, captando e registrando todos os seus rostos, redesenhando seu universo. É bem verdade que, aparentemente, se eu assistir cem vezes ao mesmo ator, não o conhecerei melhor pessoalmente"



- Camus de todas as horas