2016 e suas mulheres

Era uma manhã de agosto e o meu telefone na redação começou a tocar.

- Estado...
- Alô, eu queria falar com o Felipe, por favor.
- Sim, é ele. Quem fala?
- Aqui é a Rosa.

Dona Rosa, eu sabia, era a mãe de Wilker Osório, um rapaz, 29 anos, ajudante de pedreiro, morador de Barueri. Não esperava que ela me ligasse. Um dia antes, eu havia ido até a casa deles, mas, como não encontrei ninguém, deixei na caixa de correio o meu cartão e um bilhete. "Estou fazendo uma reportagem e gostaria que a senhora pudesse falar comigo".

Wilker era uma das 23 vítimas da maior chacina da história de São Paulo. Foi assassinado com quarenta tiros. Sempre que eu me lembro que foram quarenta tiros, faço a contagem na cabeça: um, dois, três, quatro, cinco, reticências, reticências. Acho que dá um pouco a dimensão.

Quarenta tiros contra um Wilker que voltava a pé do trabalho, trazendo uma mochila nas costas e, dentro dela, a marmita, os talheres, hortelã e capim-santo. As folhas foram colhidas para uma Dona Rosa que estava resfriada. É claro que ela nunca bebeu o chá. Foram um, dois, três, quatro, cinco, reticências, reticências, contra um Wilker que voltava a pé do trabalho, trazendo uma mochila nas costas. Voltava a pé do trabalho. Quarenta tiros é reticência demais.

Antes da conversa, Dona Rosa me perguntou se eu sabia de duas viaturas que ficaram passando pela frente da casa no mesmo dia em que eu fui lá. Respondi, sinceramente, que não. Ela, sem motivo para acreditar, não sabia quem eu era, nunca viu meu rosto, acreditou. Na minha vez, pedi desculpa pelo assunto, imaginava que doesse. Ela me disse que doía, sim, mas que alguém precisava falar.

Me senti idiota perguntando "quem era Wilker", "que tipo de lembrança a senhora guarda dele", "como a senhora recebeu a notícia naquele 13 de agosto", "o que mudou um ano depois, Dona Rosa". Sempre me sinto idiota fazendo pergunta a uma mãe que perdeu o filho. Pergunto sobre algo que eu sei que não posso dimensionar, que não está ao meu alcance. No máximo, talvez eu consiga captar alguns elementos, algumas nuances, e colocá-los em perspectiva. Colocá-los em palavras que vão preencher três, quatro parágrafos na esperança, sem garantia nenhuma, de que também deixem umas reticências por aí.

Toda vez que eu pedia desculpa e que Dona Rosa me respondia "tudo bem, meu filho, alguém precisa falar", eu ficava mais impactado. Dona Rosa falou que, desde a morte do filho, não conseguia mais pagar o aluguel de R$ 740 (um cálculo rápido, quarenta balas de .40, em 2015, chegavam a custar algo como R$ 340). Falou que passou a morar com uma irmã que estava com câncer e que escondeu as fotos do filho para que o assunto não tomasse conta da casa. Disse que estava cansada, mas que não deixava transparecer. Achava que tinha que ser forte pelos outros. Quando chorava, chorava escondida.

Desliguei o telefone e não escondi o choro. Sentada pertinho de mim, a Gi, que é uma das amigas a quem eu peço opinião sobre textos antes de publicá-los, me abraçou e, generosa que é, emprestou os ouvidos. Eu disse que não dava mais conta, não tinha sobrado víscera para isso, não. Era a terceira matéria grande em menos de seis meses que eu precisava conversar com familiares de pessoas assassinadas (antes, tinha publicado o especial de "Mortes Suspeitas" e "Dez anos dos ataques do PCC").

Este texto não é sobre tristeza, é sobre aprendizado. Desci para fumar um cigarro e pensei na minha mãe, no meu pai, minhas irmãs, minha vó. Pensei em Mayra, esse presente que a vida me deu. Nos meus amigos que, não importa a circunstância nem a geografia, estão sempre por perto. E no tempo que eu perco reclamando da camisa que rasgou, da passagem que está cara, do plano que não deu certo - com a vida aí, velho, com esse tanto de gente para a gente amar.

Escolhi falar de Dona Rosa no último dia do ano porque ela foi uma das várias mulheres dispostas a dividir a força com que vivem a vida. Pessoalmente, tive o privilégio de conhecer Alieti, avó de Tainá. Vera Lúcia, mãe de Ana Paula. Maria Sônia, mãe de Wagner. Edinalva, mãe de Marcos. Débora, mãe de Rogério. Carla, mãe de Nivea - essa última uma bebezinha de dois meses que encontrei no Hospital Oswaldo Cruz, referência no tratamento de microcefalia em Pernambuco. Meu agradecimento a todas elas por permitirem que eu me tornasse uma pessoa um pouquinho melhor.

Falem o que for, 2016, para mim, foi um ano foda. Até teve suas perdas, algumas delas bem pesadas, mas nada que me forçou a sair escondendo retratos. Passei a maior parte do ano rodeado de pessoas queridas em casa, na redação e na rua. Troquei ideia com referências do Jornalismo, com estudantes, com colegas, com amigos. Conheci um monte de gente disposta a compreender o outro, a não se levar tão a sério assim e a tomar cerveja de buenas numa quarta à noite.

Consegui viajar, consegui ver minha família mais de uma vez e consegui passar o carnaval no Recife (coisa que não acontecia há seculos). 2016 também me permitiu redescobrir pessoas incríveis e me devolveu a capacidade de amar sem reticências. Há uns bons anos eu não me sentia tão vivo e tão inteiro, e nem dava início aos próximos 365 dias com tantos projetos na agulha. Então, maninho, eu só tenho a agradecer.

Muito, muito obrigado.

Eu, tu, eles

Valéria gosta de cheirar o dedo depois de espremer os cravos do nariz
Antenor nunca saiu de casa sem lustrar a aliança com pasta de dente
Iara ouve música tailandesa no volume máximo para estudar direito penal

Tamires sente falta de ar se cobrir os pés com o lençol na hora de dormir
Osmar usa a palavra "empoderamento" toda vez que fala com a empregada
Mateus não publica nenhuma foto com menos de seis hashtags
Aureliana faz questão de lavar a banana depois de tirar a casca
Ramos vê cartoon network quando fecha uma venda de bauxita para a china

Nilo atendeu os conselhos do pastor e agora reza para ter polução noturna
Ondina começou as aulas de russo porque quer ler maiakovski no original

Carmen aperta dois andares a menos no elevador e sobe o resto de escada
Ugo comprou um estetoscópio e consegue ouvir melhor a vizinha gemendo

em qualquer esquina

o fruto de angico secou
não sei se por insistência do sol sobre os galhos
ou se por demais repisado quando no chão.
mas da concha longilínea sobrou uma massa dura e marrom,
inteiramente esfolada
mantendo, vá lá, duas ou três sementes entre os fiapos da casca,
apesar de tudo, ainda rica em taninos.
o que nada quer dizer.

os frutos de angico são deiscentes,
e, se isso também pouco lhe diz,
imagine um relógio incrustado no tronco da árvore
que, na real, não existe
nele, há uma hora xis para que a concha
se abra em fenda, num momento de flor resignada,
deixando livre meia dúzia de sementes.
nem todos os frutos de angico são pontuais.

as sementes de angico também são marrons,
mas arredondadas e glabras, o que,
subtraindo o exibicionismo linguístico dos botânicos,
quer dizer simplesmente sem pelos.
nelas, há apenas dois-vírgula-poucos-porcento de bufotenina,
um alcaloide que atua diretamente no córtex cerebral
e, veja só, deriva da serotonina.
dizem que os yanomami a aproveitam na fabricação de alucinógenos.
nunca vi um yanomami passeando em são paulo.

na rua onde o fruto de angico caiu, há árvores a cada sete metros
e à noite desenham sombras duras com o amarelo dos postes
ficam as sombras e a tonalidade amarelada,
dos cartazes que o tempo descolore, lembra?
talvez semelhante à da espada de iansã, quando espeta o sol
ou a de uma infecção hepática.
todos os postes funcionam perfeitamente.
os moradores reclamam da iluminação precária
e do risco permanente de assalto.
os que dormem sob as folhas de angico são os que mais reclamam.

num instante qualquer, sopra uma brisa forte rua acima,
que vai marcando curiosas espirais, girando, girando, girando
a gente vê o vento por causa da poeira
e a gente vê o tempo por causa da poeira
girando, girando
parece, sei lá, uma cena fajuta, meio filme sessão da tarde
mas a trilha sonora era boa
o farfalhar dos farelos de lixo e dos restos de folhas pisadas
contra o silêncio da rua.
girando.
ao fundo, o cheiro de bosta de gente gotejada na calçada.

um bêbado agora tenta subir a rua aos tropeços,
sete metros separam uma árvore da outra.
até que se apoia no angico para coçar a virilha.
usa uma calça rota, camisa amarela e sandálias havaianas só a tala.
leva um cigarro na boca que parece já ter apagado há duas semanas.
ao se dar conta, descarta a bituca rente ao meio-fio,
depois, no vazio, arrisca uma cusparada.
e o vento não leva.

só quando foi entrar em casa, umas trinta cervejas dali,
percebeu a sandália suja de merda
na merda ainda pendia uma semente seca, como uma pérola presa.
afirmativa falsa, contudo
porque angico é daquelas árvores que dão em qualquer esquina.

Selva Selvaggia

(ou Atravessando um artigo do Roberto Campos)

Millôr Fernandes, O Pasquim - Nº38

De repente um terror me sacode. Penetrei distraído e sinto que estou perdido na terrível floresta de linguagem do Roberto Campos. Ignorando a estrada sintática, ele me trouxe a zonas praticamente intransponíveis. Sem querer me entregar ao medo, vou tropeçando em anglicismos, datinismos, barbarismos e idiotismos de linguagem, quando ouço o silvar de vocábulos paragógicos. Caio no areal dos solecismos e sou mordido por vários anacolutos. A custo, afastando duas redundâncias e esmagando um horrendo pleonasmo, escorregando em sinistras hipérboles, agarro-me a um verbo auxiliar e a um complemento essencial. Porém, hibridismos me barram o caminho. Ensurdecido por rotacismos e lambdacismos, arranhado por orações anfibológicas, recuo para cair no terrível cipoal da regência robertiana, de onde raros escapam com vida. Galhos de corruptelas me cortam o rosto, enquanto sufoco com o cheiro dos defectivos. Ponho o pé num nome próprio que acho seguro, mas logo seis substantivos deverbais saltam sobre mim. Não tendo fuga, me protejo com uma próclise, evitando duas espantosas mesóclises e aproveito um advérbio de negação para atrair três pronomes relativos colocados em posições ameaçadoras. Estou esgotado: felizmente - coisa rara neste tremedal! - surge a clareira de um parágrafo.


Voltar não é mais possível. Avanço pois, abrindo parênteses onde enfio arcaismos, anacronismos, expressões chulas e ambivalentes. Uma silépse espera-me mais à frente. Desvio-me com uma vírgula, engano uma prosopopeia e sou envolvido por diversos parequemas a que logo se juntam odiosas ressonâncias verbais. Descanso sobre reticências, quando ouço o tantã de interjeições pejorativas emitidas por sujeitos ocultos por elipses. Apócopes! Escapo pela picada do eufemismo e paro para respirar no fim de um período simples. Avanço pela pedreira dos metaplasmos, luto com apofonias, salto o pantanal dos cacófatos, esbarro em cacografias, empurro cacologias, me arrasto pela cacoépia. Estou sufocado de exaustão diante de uma centena de substantivos promíscuos, já desespero, quando percebo o ponto final.



Estou salvo - Roberto Campos acaba sempre num lugar-comum.

Os vivos do Castelo

Foto: Milton Kaor Nishida/Divulgação

Basta espichar a vista por cima do muro para perceber: a decadência do Castelinho da Rua Apa, na esquina com a Avenida São João, no centro de São Paulo, é de uma obscenidade dolorosa. Construído em 1912, pela família do médico Vicente César dos Reis, o imóvel guarda poucas lembranças dos seus dias suntuosos e das muitas festas para a alta sociedade paulistana. Do lado de fora, a fachada, de pretensa elegância, se vê carcomida por grandes rasgos de tijolos aparentes, como costelas expostas de um corpo qualquer apodrecendo ao relento. No telhado, a lona azul substitui a cobertura que o tempo, há muito, corroeu. As madeiras das portas e janelas estão podres; as grades, enferrujadas. De vivo, há os pombos. E as trepadeiras que descem as sacadas aproveitando cada palmo de parede que o abandono oferece.

Aos 63 anos, Maria Eulina sabe muito bem o que é estar entregue à própria sorte. Hoje, quem a avista de relance nem imagina que aquela senhora baixinha, de fala ligeira e feição decidida, foi moradora de rua. Viúva de um executivo bem-sucedido, ela é o avesso do que, socialmente, convencionou-se chamar decadência. Ainda assim, faz questão de guardar muitas lembranças dos seus dias menos suntuosos. Em 1971, partiu de São José dos Basílios, no interior do Maranhão, onde ficava a fazenda do pai, rumo a São Paulo. Em pouco tempo, se viu desempregada, sozinha e sem ter onde morar. Ao todo, foram 19 meses fazendo do asfalto a cama. E das sobras de comida dos outros o sabor do próprio banquete.

Aparentemente inversos, os caminhos de Maria Eulina e do Castelinho da Rua Apa se cruzaram em 1997. Desde então, é na edícula do imóvel, uma área de aproximadamente 600 m² anexa ao casarão, que funciona a ONG Clube de Mães do Brasil, fundada e presidida pela maranhense. “Quando eu morava nas ruas, olhava para o Castelinho e dizia: ‘Você vai ser a sede do meu trabalho social’”, conta. A instituição oferece cursos profissionalizantes e serviços de apoio, como refeição e abrigo, aos moradores de rua no bairro de Santa Cecília. Muitos, entre eles, ex-detentos e dependentes químicos. Ao entrar para algum projeto da ONG, todos recebem o mesmo aviso: “Eu não quero saber o que você já fez. Mas o que você vai fazer a partir de agora”. Maria Eulina estima ter beneficiado, no mínimo, 70 mil pessoas. “Eu garimpo vidas."

Em geral, o Clube de Mães do Brasil sobrevive da venda de produtos feitos com material reciclado, que ganham forma nas mãos de homens e mulheres assistidos na ONG. Os principais artigos são bolsas e sacolas costuradas a partir de retalhos de tecido, rendas de papel e banners de propaganda. O que antes era lixo chega a ser vendido por até R$ 100 em uma das três lojas da instituição espalhadas pela cidade. “Nosso objetivo é ser economicamente autossustentável”, afirma a maranhense, para quem pedir dinheiro não fazia parte da cartilha nem quando se viu abandonada nas ruas. “A auto-estima cai, ao estender a mão para receber esmola”, argumenta. Que não se confunda, no entanto, com vaidade. Maria Eulina não é de extravagâncias. Veste bermuda jeans, sandália vermelha de couro simples e avental roxo, enquanto trabalha. Estendendo a mão.

Foto: Reprodução/Internet

Restaurar a história de pessoas não é o único desafio dela. Em maio de 1932, o Castelinho foi cenário de um dos crimes mais famosos da cidade, cujas circunstâncias jamais ficaram esclarecidas. De acordo com a versão da polícia, o filho do proprietário do casarão, Álvaro César dos Reis, na época com 45 anos, matou a tiros a própria mãe, Maria Cândida, de 73 anos, e o irmão mais novo, Armando, de 43. Depois, se suicidou com dois disparos. Dois: por mais improvável que possa parecer para um suicídio. O imóvel, que ganhou a pecha de mal-assombrado e engrossou o repertório de lendas urbanas da capital paulista, se tornou propriedade da União em 1987. De lá para cá, nenhuma reforma foi feita. Em 2004, o Castelinho foi tombado. Um patrimônio histórico de São Paulo.

Já com muito preconceitos para combater, Maria Eulina é lacônica quando a conversa tangencia o assunto. Claramente, prefere deixar o episódio dos assassinatos restrito a inquéritos policiais e arquivos de jornais. “Eu me foco na vida”, resume. Falar em fantasmas, gritos no meio da noite ou casa amaldiçoada? Pura baboseira. “O Castelinho nada mais é do que o espaço físico para transformação de histórias.” A transformação física dele mesmo, entretanto, tem sido difícil de gerenciar. O projeto de restauração foi autorizado pelo Conselho Municipal de Preservação do Patrimônio Histórico de São Paulo (Conpresp) em 2011 e, desde então, o Clube de Mães do Brasil procura investidores privados para viabilizar a reforma, estimada em R$ 3 milhões. A previsão é que as obras tenham início a partir de março de 2014. Até lá, permanecem as trepadeiras volumosas e os pombos. De vivo, pelo menos.

A liberdade de Midori Aoshima

Quando Midori Aoshima frequentava a escola no Japão, o país estava a caminho da Segunda Guerra Mundial. Entre as lembranças da sala de aula, não sai da memória a vez em que a professora perguntou: “O que vocês querem ser quando crescer?”. Prontamente, os colegas de classe se envaideceram. “Quero ser piloto de avião.” “Eu vou fabricar armas.” “Fazer engenharia naval é o meu sonho.” Pouco contagiado pela euforia bélica daquele momento, Aoshima disse com sinceridade: “Quero ser pintor”. Recebeu dez chicotadas de castigo.

Hoje um senhor de 80 anos, Midori Aoshima mantém a voz mansa enquanto conversa. Fala baixinho, quase num sussurro, um português de poucas palavras que, não raro, troca o L pelo R, né?!, como fazem os humoristas imitando os imigrantes japoneses. Desde os 23 anos, Aoshima vive no Brasil bem distante de qualquer conflito de ordem militar. Se por capricho do destino viesse a rever a tal professora, certamente ouviria que ele é uma causa pedagógica perdida. Nas mãos, nada de armas: apenas tinta e pincel. Instrumentos que utiliza para dar expressão a talhas de madeira, confeccionando peças de artesanato japonês.

Dificilmente, o lugar onde Aoshima expõe seu trabalho poderia ter um nome melhor. Liberdade, a praça no centro de São Paulo famosa por ser um reduto da cultura oriental no Brasil. Aos sábados e domingos, o local é tomado por 50 barracas coloridas de vermelho e branco, que oferecem de souvenir exótico à comida típica daquelas bandas de olhinhos puxados. Em uma delas, Aoshima aguarda, pacientemente recostado na cadeira, quem admire - e compre - o que sabe fazer de melhor: Kokeshi e Daruma.

Kokeshi é uma bonequinha de tradição milenar que, segundo se acredita, traz sorte às famílias. Ela não tem braço nem perna. Apenas o tronco cilíndrico e a cabeça desproporcionalmente crescida. Aoshima fabrica mais de trinta modelos diferentes, enfeitando-os sempre com cores vivas e caracteres kanji, aqueles símbolos incompreensíveis do alfabeto pictórico japonês. Um trabalho minucioso, que requer bastante precisão para pintar todas as linhas, bem fininhas, na medida certa.

O Daruma, um rosto de olhos opacos, talvez seja ainda mais interessante. Ele funciona da seguinte forma: pinta-se um dos olhos depois de fazer um pedido, o outro permanece sem cor até que o desejo se realize. “Caia sete vezes, levante oito”, diz o provérbio que o inspirou, em clara referência à ideia de não medir esforços diante de um objetivo traçado.

Mas nem sempre Aoshima conseguiu viver de artesanato. Inicialmente, ele veio ao Brasil para trabalhar numa empresa japonesa, que faliu um ano e meio depois. Contudo o desprezo pelo fracasso - um dos insistentes traços orientais - o impediu de retomar o caminho da antiga casa. “Tive vergonha de voltar, né?!”, conta sem muito constrangimento. De lá para cá, recorreu à lavoura, deu expediente na indústria, encontrou um jeito ou outro de sobreviver. Também se casou com uma brasileira, com quem teve três filhos. Aoshima nunca mais pisou no Japão.

Há cinco anos na Feira da Liberdade, o artesão aproveita a aposentadoria para realizar o desejo da juventude. É, depois de tudo, um desobediente ou um perseverante, dependendo do ângulo em que se olha: de professor ou de Daruma. Mas que soube retribuir
oferecendo a possibilidade de cada um - ao pintar um naco de madeira ou um simples olhinho - poder escolher o que bem entender.




Um vestido de linho impecável na memória


O muro altivo de azulejo negro já foi cerca de arame, barro queimado, chão de terra batida. Hoje, não se afunda mais os pés na lama em dias de chuva, mas o mucambo ainda sobrevive nos hábitos. Há 76 anos, Zeca mora na Rua 12 de Outubro, no nobre bairro dos Aflitos. Quando não está costurando, ela passa horas a fio na calçada, em constante indiscrição aos destinos da vida alheia. Fica sentada no banquinho de madeira, “vendo o povo encher a rua de perna”, como gosta de dizer. Afeita a conversas, é sempre solícita com quem lhe bate à porta. Toc toc toc. “Pode entrar, aqui só paga a saída.”

Por dentro, a casa é muito simples; no sofá de três lugares, o tecido do forro, em estampas floridas, é o mesmo da cortina que divide a sala apertada dos demais aposentos. O teto é baixo; o telhado, aparente. Em cima da cômoda, a imagem de Santa Rita de Cássia – ganhou de aniversário em março – vela suas causas impossíveis. “Agorinha, Verônica me deu um dinheiro que estava perdido faz uma semana. Eu já peguei nele hoje cedo, e não sei onde botei”, conta, com uma dicção marcada por ênfases precisas, enquanto revira, em vão, um monte de papéis espalhados. Desde que sofreu um princípio de acidente vascular cerebral, há quase dois anos, é a filha quem vai receber a aposentadoria no seu lugar.

Quando, enfim, desiste da busca, se derrama feito criança na cadeira de plástico – a postura torta, a perna apoiada num canto mais alto. Fica contente em falar de si mesma, de ter sido uma das poucas na rua que aprendeu a confeccionar calça comprida ou de como preparou à mão o enxoval das três meninas em opala e cambraia zebrinha. “Até os casaquinhos de flanela para dormir, tudo com o viesinho, eu procurava caprichar”, diz. Apenas algumas vezes, mantém a frase suspensa: recavando palavra perdida nas gavetas da memória. Datas e nomes, em especial os mais recentes, lhe escapam com certa frequência. E isso a tem preocupado bastante.

Naquela casa, as paredes ainda estão rabiscadas por travessura de miúdos. Mas ali não há mais crianças: o neto mais novo completa quinze mês que vem. Tudo parece, quase confessadamente, remeter ao passado. E nada com tanto impacto quanto a máquina de costura reta, que fica bem no meio da sala, ocupando, se duvidar, um terço do espaço. Uma Singer autêntica, com suporte de metal rendado - um tanto desgastado, é verdade - mas ainda assim conservando certo ar de requinte. Para funcionar a agulha, nada de eletricidade: o dorso do pé precisa compassar harmonicamente o pedal de ferro fundido. Subindo e descendo, subindo e descendo. “Quando veio para a minha mão ela estava com uns cinquenta anos, do jeito que chegou deixei”, conta, apontando  os cordões remendados que reforçam a correia já velhinha. “Madrinha quem mandou do Rio de Janeiro, trabalhava em casa de família inglesa”, completa. Nunca - nunca, ouvi bem?! - permitiu que alguém tocasse nela.

Por trás dos grossos óculos de grau, os olhos orgulhosos admitem: “Costurar foi o único serviço que eu fiz na minha vida toda”. Ela interrompeu o colégio na quarta série; os estudos não atendiam às necessidades imediatas da família, pobre. Aos treze, viu no jornal o anúncio de uma venda na Rua das Pernambucanas, perto dali: contratavam-se dedos ágeis para chulear, fazer caseamento, abanhado, pregar botão, gola ou punho. “Eu não sabia nada, terminei aprendendo lá mesmo”, revela. Das primeiras tarefas de acabamento para a incursão em corte e costura foi um pulo, antes dos vinte já trabalhava por conta própria.

Naquele tempo, a 12 de Outubro era repleta de costureiras. Em poucos segundos, Zeca é capaz de nomear um punhado de exemplos. Margarida, Dona Maria, Dona Aurora, Maria do Monte, Dona Inesinha. Todas vizinhas. Nos dias atuais, resta apenas uma. “O pessoal agora compra muito roupa aprontada”, justifica, elucidando também o motivo pelo qual vê sua atividade praticamente reduzida a pequenos consertos.

De acordo com o jornalista Phelipe Rodrigues, que é especialista em moda, os tempos áureos da costura já findaram há anos. “Até a década de 1960, as lojas de tecido, chamadas fazendas, eram comuns na cidade do Recife. Hoje, há o fast fashion, mais prático e mais rápido; empreendido pelas empresas de moda que oferecem o prêt-à-porter”, no bom português, pronto para vestir. “O papel da costureira se tornou quase exótico, é um momento de exceção, em que se recorre quando há uma festa de quinze anos, um casamento. É como beber champanhe: se muito, uma vez ou outra.”

De fato, cada vestido de organdi demandava tirar as medidas do ombro, busto, cintura, quadril; fazer o molde, cortar, montar, para só então poder ser posto à prova. “Já manheci muito dia na máquina de costura”, recorda Zeca, que sempre preferiu as noites para percorrer tecidos em linha. Hoje, só recebe mesmo quem a conhece de outrora: nem a plaquinha em que se permitia ler costura-se fica mais pendurada no muro altivo de azulejo negro, que já foi cerca de arame, barro queimado, chão de terra. Três batidas na porta. Toc toc toc. “Pode entrar”. – Quanto ficou, Dona Zeca? A moça bem vestida (“mora no prédio da outra rua”) recolheu a sacola plástica, calção e saia bem dobrados, e, sem troco para vinte, saiu sem pagar. 

                                                                    *** 

Há dois anos, Zeca – que na verdade se chama Maria José Tibúrcio Duarte – enfrenta intermitentes internações em hospitais, em virtude da pressão alta e de ataques isquêmicos. “Estou me sentindo muito deprimida, porque não tenho mais cabeça para fazer o que fazia antes”, manifesta a costureira que perdeu o controle sobre quantos remédios precisa tomar. Desde então, a morte aparece obscenamente no seu discurso. Ao mencionar as pessoas que um dia conheceu (são muitas), mas que já faleceram, acrescenta sempre o prefixo finado (“que Deus o ponha em bom lugar”, logo depois). Se a memória falha, ela balança a cabeça, estala a língua, demonstra irritação consigo mesma. “Qualquer dia desses, você recebe a notícia que eu fui embora.”

A contar do nascimento, Zeca passou a reunir ausências. De imediato, dos pais. Foi criada pela avó viúva, Dona Joana Evangelista, e por Gina, a tia por parte de mãe que, a vida inteira resguardada, definhou naquela casa, compartilhando do mesmo teto, “sem botar uma vela, sem nada”. “No velório dela a funerária trouxe um véu roxo, eu mandei trocar por um branco”, relata em decoro à castidade da tia. Como a família não permitiu a realização da autópsia, a causa mortis foi condenada à dúvida. “Ela nunca se casou, nunca namorou. Abrir o corpo depois de morta seria desrespeito.”

Das recordações da mãe, Firmina Duarte, com quem “nunca tive conversa, dizem até que costurava muito bem”, guarda o dia em que ela tomou os rumos do Rio de Janeiro à bordo de um navio. “Ela veio aqui em casa se despedir da gente. Eu era muito pequena, mas – veja como são as coisas – me lembro bem do vestido que usou para viajar: todo cor de rosa, de linho. Fui abraçar, assim, pela cintura; ela segurou meus braços, para não amassar o vestido.” As lembranças do pai – na certidão de nascimento, Severino Tibúrcio Duarte – são, contudo, ainda mais inquietantes. “Ele morreu e nunca chegou a saber da minha existência”, conta, sem economizar no tom do advérbio.

Nas vezes em que as irmãs mais velhas, Célia e Zélia, eram levadas pela vizinha (a finada Dona Olímpia), para visitá-lo, Zeca era privada do passeio e tinha de permanecer sob os cuidados da avó. “Sempre fui tratada de forma diferente, e não entendia por que”, diz. “Eu me lembro, a casa era um mucambo mesmo, no canto tinha uma mesa, que ele vinha tomar café de vez em quando com de noite. Era só ele chegar que Gina me levava lá para o fundo, para ver o quintal. Tinha manga, sapotizeiro, bananeira, pé de fruta-pão, tudo que eu sabia que tinha."

O motivo de tanto esforço para minimizar a margem de encontro entre pai e filha manteve-se em segredo por todos da casa. Sobre isso, Zeca só veio tomar tino durante uma das muitas conversas de rua, em que, sentada no banquinho de madeira, viu a indiscrição do próprio destino ser escancarada por um conhecido da família. Severino era caboclo; Firmina, negra. As duas irmãs mais velhas: tez escura, cabelo crespo. Zeca nasceu com a pele branca e o cabelo claro. “A coisa melhor do mundo que achei nessa entrevista foi que nunca tive oportunidade de falar isso com ninguém.” Julguei que era uma confissão sincera. Meio sem jeito, agradeci pelo encontro, disse que voltava para mostrar o texto; quando me respondeu. “Sabe, estou até pensando em colocar a plaquinha de novo.”