- Garçom, tem um bigode na minha democracia!



Alguma vez na vida, você deve ter ouvido um professor entediante afirmar que a Idade Média foi marcada pela crença no significado sobrenatural do universo. Acontece que, na pegada dualista do carrossel da fé, se costumava atribuir significações positivas e negativas às coisas. Um leão podia ser Cristo ou o Demônio. As ervas e, veja você, até as pedras serviam a Deus ou ao Diabo. Ou a Deus e ao Diabo.

Não seria diferente com as cores. O vermelho, por exemplo, representava a coragem da nobreza; os carrascos e as prostitutas. Eis que o tempo, em poder da imprevisibilidade, faz com que as matizes carreguem nas costas novos valores. O verde de anos atrás, embora seja igual, não é, hoje, o mesmo.

Os sentidos são reciclados de acordo com os perfis em que se moldam as sociedades. A importância em evidenciar esse processo que – note a obviedade – é histórico reside, justamente, em evitar cair na falácia da naturalização. Do é, porque é. Nada é, porque é.

Toda essa longa – e igualmente entediante quanto no ensino médio – exposição foi para tentar mostrar que os valores se renovam, mas não se desprendem de sua raiz. O que não descarta (ao contrário, potencializa) a qualidade plural das coisas. Assim, também é com as palavras.

Muitos termos, no entanto, provam o dissabor de terem seus sentidos distorcidos. Não é que haja um significado engessado (estaria, inclusive, me negando se assim afirmasse), mas é que se faz preciso encontrar elementos que sustentem, objetivamente, determinado valor. Vou esclarecer.

Uma das expressões que mais sofre com uso arbitrário é democracia. Do grego: demo, povo; kracia, governo. Bem verdade é que, na poeira da Antiguidade, povo era entendido de outra forma (isso também é papo amarrotado de pré-vestibular). Aos pés do Olimpo, mulheres, estrangeiros e escravos são café-com-leite.

Hoje, compreende-se democracia como respeito às diferenças, o combate às imposições e a luta pela afirmação dos indivíduos. Claro que não é restritivamente isso, mas – como cantam as cores medievais – é isso também. Inevitavelmente, contudo, sempre há alguém para meter o dedão sujo no sentido das coisas. Tentar empurrar uma significação a-histórica. Só para azedar a aquarela.

Por aqui, o desbotado presidente do Senado, José Sarney (PMDB-AP), achou justo riscar os céus do Maranhão a bordo de um helicóptero. Problema zero, se não fosse um porém: o aparelho pertence à Polícia Militar do Estado, e a viagem era de cunho particular.

Quando em carne viva, a pele é mais sensível. Sendo Sarney um dos maiores colecionadores de embananamento administrativo no país; foi inevitável impedir a nova saraivada de protestos.

Mas o dono do bigode mais imponente do Legislativo não se encabulou. Clamou ser seu direito passear pelos ares com dinheiro público. Falou em nome da liberdade e dignidade dos parlamentares que, coitados, não podiam chafurdar na miséria das estradas. Nem sujar os pés na lama comum aos brasileiros-de-todo-dia. Falou em nome da democracia.

"Quando a legislação diz que o presidente do Congresso tem direito a transporte de representação, estamos homenageando a democracia, cumprindo a liturgia das instituições". Aí, está. Veja que o senador faz, ainda, uso confuso de outra palavra escorregadia. Liturgia. Que também vem do grego, e, originalmente, quer dizer trabalho público. Trabalho público, helicóptero público. Interesse particular.

Perceba que, por trás da “homenagem”, se escondem valores muito mais próximos da Idade Média. Pois, o poder não é ocupado para representar o povo, mas para ser servido por ele. E isso não deveria ter nada a ver com o entendimento político atual. Assim como, hoje, ninguém acredita que o leão é símbolo do capeta. Pelo menos, não deveria.

O que Sarney não consegue fundamentar é a manutenção de prestígios em um país que contrasta um dos maiores quadros de desigualdade social do mundo com o fato de hospedar o parlamentar mais caro do planeta (e para quem, em dezembro de 2010, foi aprovado aumento de 61,83%). A sua base argumentativa sustenta-se no privilégio e no personalismo. Por isso, é anacrônica.

Pode-se pensar a democracia por vários tons, mas é de uma covardia imensurável dela fazer uso para maquiar a autonomia dos representantes frente à soberania popular. O caríssimo senador se esquece que o político digno é o que responde junto a um povo digno; e não um político milionário. Enquanto se der suporte para regimes “de cima para baixo”, o brasileiro continuará sufocando em sua própria vergonha.

No século treze, São Tomás de Aquino dizia que o homem julga belo aquilo que possui cores nítidas. Hoje, a “democracia” de Sarney revela uma opacidade tão turvamente definida que caminha para a escuridão da ignorância. O branco dilata a pupila; o negro contrai. E o momento é de abrir os olhos. Lançar luz na condição da democracia como conceito e como prática. Pois, por mais que ela passeie por toda uma escala cromática de sentidos, não pode deixar de ser transparente.

diário exercício da desconfiança

04 de março,

Achei uma aranha minúscula dentro do meu livro. Num impulso de malvadeza, aproximei meu cigarro da aranha que se pôs a correr freneticamente. Coloquei o cigarro aceso à sua frente, ela mudou de rota. Repeti o ato várias vezes até a aranha se imobilizar. Deixei-a sossegada por um tempo. Num novo impulso, aproximei o cigarro aceso por cima, e ela voltou a correr. Continuamos assim por uns dois minutos. Ela então cansou, encolheu as pernas e tornou-se imóvel mesmo sem ter sido tocada pela brasa do cigarro.

É possível que, para essa aranha, o tamanho do livro seja o do Japão, e cinco minutos sejam cinco ou dez anos. Durante esse período, e nesse espaço, onde quer que ela fosse, havia fogo. E quando ela parou, o fogo veio de cima... Se isso acontecer a um ser humano, ele enlouquece. A aranha não entendia de onde vinha aquela chama. Seres humanos também perdem.

Desejo me tornar um homem capaz, mesmo que a grande custo. Capaz de identificar objetivamente a causa do problema, e transmitir esse conhecimento à geração seguinte. Feito isso, posso morrer. Através da alegoria da aranha traço um retrato doloroso do povo japonês nestes tempos de guerra – sem entender o que ocorre, ele corre sem rumo, em busca de uma saída para a situação impossível causada pela guerra.

- Sasaki Hachiro, 22 anos





“Quando a operação tokkotai foi criada, em outubro de 1944, nem um único piloto oficial treinado nas academias militares japonesas se apresentou como piloto voluntário – todos sabiam que se tratava de missões suicidas.

Os 'voluntários' foram perto de 3 mil 'meninos-soldados', nome dado às levas de adolescentes recém-recrutados como parte do esforço de guerra. Outros mil eram 'soldados-estudantes', universitários formados às pressas pelo governo para entrar nas fileiras militares. (...) Eles eram cosmopolitas e cultos, dados a reflexões profundas, fruto do exigente currículo escolar japonês. Era obrigatório o estudo de duas línguas estrangeiras, além do latim.'”

Revista Piauí, 61