Está no imaginário social. Quadro de presídio é pintado em cores de tensão, tristeza e revolta. São mãos que, em bravata, agarram as grades desgastadas, no encontro grosseiro entre a bestialidade e a autocompaixão; é o silvo metálico que ressoa, em quandos, na espinha dos corredores emudecidos; é o bafio sombrio e empoeirado do claustro; e, o que assola, é a solidez da solidão.
As experiências, dali, não se carregam em porta-retratos.
Como se não bastasse a atmosfera opressiva de toda instituição totalizante, o sistema carcerário brasileiro convive, no quesito hostilidade, com um agravante a um passo de ser naturalizado: a superlotação. Presos são apinhados em cubículos de concreto; por vezes, celas, regularizadas para receber até cinco pessoas, aglutinam quase trinta. A realidade subumana – em que palavras como privacidade e organização, há muito, não são ouvidas – materializa um universo dantesco, com menos literatura que na Renascença. Bem menos.
Entretanto, parte do que se pensa – e muito do que se cria sobre os presídios – não atravessa a risca da suposição coletiva. Ao contrário do que a mitologia perpetuada aponta, é possível buscar alternativas de humanização, mesmo em meio a condições de extrema adversidade. A política de ressocialização aponta que, através do trabalho e do acompanhamento escolar, detentos conseguem fixar os primeiros degraus na escada de saída de seus infernos particulares. O encontro entre instrução e aprendizado tem, no fortalecimento da condição de indivíduo autônomo e livre, sua foz.
A Colônia Penal Feminina do Recife, localizada no bairro de Engenho do Meio, zona oeste da cidade, tem capacidade para abrigar 150 mulheres. No dia 23 de maio, recebia 675. Segundo o Conselho Nacional de Justiça (CNJ), as condições do estabelecimento são péssimas. Nas celas, sequer há espaço para o varal. O banheiro é minúsculo, e uma cortina de tecido barato faz vez de porta. Desse lado, o repertório de atividades é minguado, dormir e assistir a uma televisão de 14 polegadas – a que toda cela tem direito, se for fornecida pela família das detentas – é, na melhor das hipóteses, o que se tem para fazer.
Duas faces da realidade
Da inércia e da desordem, se cria um ambiente de angústia compartilhada, que reduz a perspectiva mais simples à menor chance de se fazer concreta. Não se afogar no charco do desestímulo parece impossível. Mas só parece. Quase 22% das detentas conseguem fazer da vida que ali se leva também uma experiência socialmente construtiva, minimizando as chagas que a convivência na instituição provoca. Hoje, 147 mulheres trabalham na unidade; ou no setor administrativo – as chamadas concessionadas – ou em uma das quatro empresas privadas parceiras da Colônia Penal.
Empregar mão-de-obra dos presídios não é caridade. Augusto Sales, supervisor de laborterapia, explica que, de acordo com a Lei de Execuções Penais, se trata de um negócio vantajoso para as empresas. Não precisa pagar férias, décimo terceiro salário e nem rescisão contratual. Só devem ao Estado, todo mês, o valor de dois salários mínimos, para custear a energia e a água por conta das instalações, que funcionam na própria unidade prisional. O empresário também é responsável por montar o espaço de trabalho, com reformas de galpões, teto e instalações elétricas.
As detentas que trabalham no setor privado recebem 75% do salário mínimo (R$ 408,75) em espécie. Já para as concessionadas, 25% desse valor é retido na poupança que o Estado faz para cada uma. Recebem-se R$306,56 e os R$102,19 restantes são armazenados todo mês. Uma vez em liberdade, tem-se acesso integral ao dinheiro.
Ao chegar à Colônia Penal, a reeducanda faz um cadastro em que registra suas habilidades e experiências. Assim, se deveria fazer o processo de seleção para as vagas de trabalho, mas nem sempre é o que acontece. A indicação também é um fator preponderante na hora de escolher quem deve ser beneficiada pelo vínculo profissional.
A vida em um dos presídios
Antes de entrar na Colônia Penal Feminina do Recife, deve-se passar pela recepção. Uma saleta de tom triste, com ar-condicionado e relógio prata pendurado na parede, cuja mobília se resume a um sofá preto de três lugares e um birô branco, sobre o qual repousa o jornal do dia. A comunicação com a rua acontece por meio de uma delgada portinhola que precisa ser arrastada para abrir, deixando apenas os olhos à vista. Sobre o portão negro de ferro, uma câmera de segurança monitora a movimentação.
Do lado de fora, meia dúzia de parentes das detentas eram castigados pelas chuvas de maio. Acotovelando-se sob o beiral, teriam que esperar por mais de quatro horas para tentar emitir a carteira de visitação. Em vão; a greve dos agentes sociais paralisara a atividade. Lá dentro, dois funcionários, sem muito trato na gentileza, lembram que entrar no presídio com celular é crime. Eles anotam (e retêm), como quem faz favor, a carteira de identidade dos visitantes.
Uma vez na unidade, no entanto, a primeira impressão do ambiente escapa ao estereótipo. Depois da vistoria na recepção, se chega a um corredor onde algumas presas circulam livremente. São elas que apontam o caminho da Sala de Administração. Com naturalidade, ficam sentadas, observando o movimento como se fossem supervisoras de colégio. O fato de não estarem enclausuradas o tempo inteiro tem explicação: são também funcionárias do presídio. Precisam efetuar uma série de tarefas, entre as quais fazer faxina, entregar encomendas que já foram revistadas e servir cafezinho para os agentes penitenciários. O uniforme lilás as diferencia.
O corredor, com uma samambaia de plástico pendurada na entrada, tem forma de L. Na entrada, uma porta dá acesso ao galpão em que funciona uma empresa de costura. Engana-se quem acha que os produtos fabricados ali servem para uso no presídio; na verdade, são vendidos em grandes lojas de Recife. Na final do corredor, há o berçário onde as gestantes, que demandam cuidado sanitário específico, são isoladas. Antes disso, na curva, uma grade com trava elétrica, daquelas que são abertas por um interfone, o separa do pavilhão central, onde acontece a maior parte das atividades sociais do presídio.
Bem no centro do pátio de convivência há uma pequena quadra de cimento, onde um grupo joga vôlei com o professor de Educação Física. Em suas pilastras estão amarrados os barbantes em que secam dezenas de roupas. Tudo é visivelmente improvisado. Ao redor, o chão é de terra batida. O pavilhão é retangular; nas duas laterais, funciona uma série de estabelecimentos da unidade. São como casinhas enfileiradas, cada qual com uma atividade distinta. Aos fundos, do lado de uma guarita suspensa completamente vazia, há um imenso portão cinza. É através dele que cinco reeducandas, vigiadas por dois agentes, despejam sacos de lixo na rua. Na mesma hora, na cozinha, um grupo prepara o almoço do dia: fígado com feijão.
No final do pátio, o salão de beleza Zuzu Angel está lotado. Ele pertence ao Estado; os tratamentos estéticos devem ser comprados na administração da Colônia Penal, e servem para custear os gastos da unidade. As manicures sempre cobram novos alicates de unha. Um corte custa R$8,00, já a escova sai por R$12,00. A média de preço na cidade, para os mesmos serviços, é, respectivamente, R$25,00 e R$30,00. Do outro lado, uma cantina vende almoço para quem não aprecia a comida da prisão. E também material de higiene pessoal, bebida não-alcoólica e cigarro. O chocolate está em falta; a sardinha custa R$3,00 e a lata de creme de leite R$2,00. O maior lucro fica a cargo do refrigerante, vendido em garrafas de dois litros a R$5,00. Os 1.700 pães diários, consumidos no presídio vêm da padaria, que fica entre as duas partes da cantina. Cinco mulheres os produzem em um ofício que é passado pelas gerações de detentas.
Em outras salas ao redor do pátio, funcionam as empresas. Algumas são escuras e úmidas, por conta de vazamento. Segundo Sales, o problema será solucionado com a reforma do andar de cima, que deve receber nova parceria, já em processo de negociação. Outras, em locais mais claros e ventilados. A fábrica de costura é a única que fica na área externa, perto da recepção. Lá, um pequeno quadro salta aos olhos. Traz uma lista com a quantidade de materiais usados por elas como chave-de-fenda, estilete, tesoura. Todos os dias, a recontagem das ferramentas é feita. “Já sumiram?”. Sales: “Já, mas ameaçamos: 'se não aparecer até o fim do dia, todo mundo perde o emprego'. Apareceram”.
Lúcia* está presa há mais de três anos. Com quinze dias na Colônia Penal foi chamada para trabalhar. Por ironia, em casa, a máquina de costura da mãe nunca a atraiu, mas, no presídio, seu primeiro ofício foi confeccionar lençóis. Com pouca familiaridade, teve que se desdobrar para traçar os primeiros pontos. Com o tempo, passou por uma empresa de produtos para construção civil – que não funciona mais – e, há quase um ano, está no setor administrativo. Trabalha com a agente penitenciária Fátima Vasconcelos. Como a própria Lúcia explica, faz “de tudo um pouco, concentrando-se na limpeza’’.
Fátima conta que, quando estava perto de sua funcionária anterior sair da prisão, passou a observar as demais detentas. A dedicação e o valor que Lúcia atribui a tudo que faz lhe chamaram atenção. Tal zelo só pode ser justificado pelos benefícios que a ocupação proporciona. Além do aprimoramento profissional, ela possibilitou à reeducanda estreitar relações com suas colegas de trabalho, “são como uma família para mim’’, explica. Assim, foi possível tornar produtivos e menos estafantes os dias na Colônia. “Lá fora, às vezes, a gente não quer nada; a mãe dá conselho, mas a gente tem que vir parar aqui pra pensar. Eu acho que, se fosse hoje, não estaria aqui”.
Lúcia já dividiu com outras 19 pessoas a mesma cela. Mesmo assim, contrariando o que se espera, conta que, embora muita gente discorde, a sua vida no presídio está longe de ser um inferno. Acorda cedo, toma café, e às 8h começa o expediente que só termina às 16h, com uma hora para almoço, ao meio-dia. A convivência com as detentas que não realizam nenhuma atividade é mínima.
Diva* também tem vida ativa na prisão. Há dois anos e oito meses trabalha na costura durante o dia. À noite, é aluna da Escola Olga Benário Prestes, que funciona na Colônia Penal. “Todo benefício pra reeducanda é bom. Escola, trabalho, pintura, arte, tudo! Porque você ocupa a mente. Se você ficar só dentro da cela, começa a maquinar só coisa do mal. Nunca vi ninguém parado pensar coisa do bem, nunca vi. Então você começa a pensar: 'estou parada, precisando de dinheiro, acho que vou colocar uma droga no corredor. Estou parada, vou fazer uma cachaça...’”.
Durante os três primeiros meses, só uma preocupação a consumia, ir embora. No entanto, as experiências de ser mãe e, principalmente, avó caíram-lhe quase como uma epifania. Descobrir outros sentidos para a vida a fez pensar em não mais se envolver com drogas. A guinada lançou luz sobre seu futuro, materializando-se em planos. Decidiu: quer montar um lava-jato, quando estiver do outro lado do muro.
Diva já ganhou um concurso organizado pela Secretaria de Ressocialização (SERES) com um cordel contando a experiência da sua prisão. A literatura é incentivada na escola do presídio, e é importante na afirmação de identidade e entendimento da sociedade. “As pessoas nos dizem: ‘Não, porque a sociedade recrimina lá fora...’, ora! Quem é a sociedade, se não somos nós?!”, explica.
A partir das 11:30h, o almoço começa a ser servido no berçário, já que as gestantes têm preferência. Uma senhora negra, aparentando ter bem mais de 40 anos, com um piercing na sobrancelha, está sentada no chão. Na altura do ventre abaulado segura uma panela de inox, da qual retira, com uma concha, o feijão, servindo-o em um pote branco de sorvete com seu nome pintado em esmalte rosa. Por etapas, as detentas vão esvaziando as celas e ocupando o refeitório. Sempre reclamam da comida.
Sem muito esforço, é possível observar que a Colônia Penal funciona como se fossem duas: uma para as que estudam ou trabalham; outra para as que não. Vivem como se em um bairro, com seus moradores e atividades. Uma das “moradoras”, sentada perto do salão, conversava conosco, como um daqueles bate-papos entre vizinhos que não podemos ser. Falava sobre Brasília, sua terra. No decorrer da conversa, contou com naturalidade o que soou como uma surpresa: “Eu moro na Asa Norte**”. Ela mora em Brasília, verbo no presente. Já que, na Colônia Penal, só se está de passagem.
*nome fictício
**bairro da cidade de Brasília
em parceria com Alana Lima
Nenhum comentário:
Postar um comentário