Os vivos do Castelo

Foto: Milton Kaor Nishida/Divulgação

Basta espichar a vista por cima do muro para perceber: a decadência do Castelinho da Rua Apa, na esquina com a Avenida São João, no centro de São Paulo, é de uma obscenidade dolorosa. Construído em 1912, pela família do médico Vicente César dos Reis, o imóvel guarda poucas lembranças dos seus dias suntuosos e das muitas festas para a alta sociedade paulistana. Do lado de fora, a fachada, de pretensa elegância, se vê carcomida por grandes rasgos de tijolos aparentes, como costelas expostas de um corpo qualquer apodrecendo ao relento. No telhado, a lona azul substitui a cobertura que o tempo, há muito, corroeu. As madeiras das portas e janelas estão podres; as grades, enferrujadas. De vivo, há os pombos. E as trepadeiras que descem as sacadas aproveitando cada palmo de parede que o abandono oferece.

Aos 63 anos, Maria Eulina sabe muito bem o que é estar entregue à própria sorte. Hoje, quem a avista de relance nem imagina que aquela senhora baixinha, de fala ligeira e feição decidida, foi moradora de rua. Viúva de um executivo bem-sucedido, ela é o avesso do que, socialmente, convencionou-se chamar decadência. Ainda assim, faz questão de guardar muitas lembranças dos seus dias menos suntuosos. Em 1971, partiu de São José dos Basílios, no interior do Maranhão, onde ficava a fazenda do pai, rumo a São Paulo. Em pouco tempo, se viu desempregada, sozinha e sem ter onde morar. Ao todo, foram 19 meses fazendo do asfalto a cama. E das sobras de comida dos outros o sabor do próprio banquete.

Aparentemente inversos, os caminhos de Maria Eulina e do Castelinho da Rua Apa se cruzaram em 1997. Desde então, é na edícula do imóvel, uma área de aproximadamente 600 m² anexa ao casarão, que funciona a ONG Clube de Mães do Brasil, fundada e presidida pela maranhense. “Quando eu morava nas ruas, olhava para o Castelinho e dizia: ‘Você vai ser a sede do meu trabalho social’”, conta. A instituição oferece cursos profissionalizantes e serviços de apoio, como refeição e abrigo, aos moradores de rua no bairro de Santa Cecília. Muitos, entre eles, ex-detentos e dependentes químicos. Ao entrar para algum projeto da ONG, todos recebem o mesmo aviso: “Eu não quero saber o que você já fez. Mas o que você vai fazer a partir de agora”. Maria Eulina estima ter beneficiado, no mínimo, 70 mil pessoas. “Eu garimpo vidas."

Em geral, o Clube de Mães do Brasil sobrevive da venda de produtos feitos com material reciclado, que ganham forma nas mãos de homens e mulheres assistidos na ONG. Os principais artigos são bolsas e sacolas costuradas a partir de retalhos de tecido, rendas de papel e banners de propaganda. O que antes era lixo chega a ser vendido por até R$ 100 em uma das três lojas da instituição espalhadas pela cidade. “Nosso objetivo é ser economicamente autossustentável”, afirma a maranhense, para quem pedir dinheiro não fazia parte da cartilha nem quando se viu abandonada nas ruas. “A auto-estima cai, ao estender a mão para receber esmola”, argumenta. Que não se confunda, no entanto, com vaidade. Maria Eulina não é de extravagâncias. Veste bermuda jeans, sandália vermelha de couro simples e avental roxo, enquanto trabalha. Estendendo a mão.

Foto: Reprodução/Internet

Restaurar a história de pessoas não é o único desafio dela. Em maio de 1932, o Castelinho foi cenário de um dos crimes mais famosos da cidade, cujas circunstâncias jamais ficaram esclarecidas. De acordo com a versão da polícia, o filho do proprietário do casarão, Álvaro César dos Reis, na época com 45 anos, matou a tiros a própria mãe, Maria Cândida, de 73 anos, e o irmão mais novo, Armando, de 43. Depois, se suicidou com dois disparos. Dois: por mais improvável que possa parecer para um suicídio. O imóvel, que ganhou a pecha de mal-assombrado e engrossou o repertório de lendas urbanas da capital paulista, se tornou propriedade da União em 1987. De lá para cá, nenhuma reforma foi feita. Em 2004, o Castelinho foi tombado. Um patrimônio histórico de São Paulo.

Já com muito preconceitos para combater, Maria Eulina é lacônica quando a conversa tangencia o assunto. Claramente, prefere deixar o episódio dos assassinatos restrito a inquéritos policiais e arquivos de jornais. “Eu me foco na vida”, resume. Falar em fantasmas, gritos no meio da noite ou casa amaldiçoada? Pura baboseira. “O Castelinho nada mais é do que o espaço físico para transformação de histórias.” A transformação física dele mesmo, entretanto, tem sido difícil de gerenciar. O projeto de restauração foi autorizado pelo Conselho Municipal de Preservação do Patrimônio Histórico de São Paulo (Conpresp) em 2011 e, desde então, o Clube de Mães do Brasil procura investidores privados para viabilizar a reforma, estimada em R$ 3 milhões. A previsão é que as obras tenham início a partir de março de 2014. Até lá, permanecem as trepadeiras volumosas e os pombos. De vivo, pelo menos.

A liberdade de Midori Aoshima

Quando Midori Aoshima frequentava a escola no Japão, o país estava a caminho da Segunda Guerra Mundial. Entre as lembranças da sala de aula, não sai da memória a vez em que a professora perguntou: “O que vocês querem ser quando crescer?”. Prontamente, os colegas de classe se envaideceram. “Quero ser piloto de avião.” “Eu vou fabricar armas.” “Fazer engenharia naval é o meu sonho.” Pouco contagiado pela euforia bélica daquele momento, Aoshima disse com sinceridade: “Quero ser pintor”. Recebeu dez chicotadas de castigo.

Hoje um senhor de 80 anos, Midori Aoshima mantém a voz mansa enquanto conversa. Fala baixinho, quase num sussurro, um português de poucas palavras que, não raro, troca o L pelo R, né?!, como fazem os humoristas imitando os imigrantes japoneses. Desde os 23 anos, Aoshima vive no Brasil bem distante de qualquer conflito de ordem militar. Se por capricho do destino viesse a rever a tal professora, certamente ouviria que ele é uma causa pedagógica perdida. Nas mãos, nada de armas: apenas tinta e pincel. Instrumentos que utiliza para dar expressão a talhas de madeira, confeccionando peças de artesanato japonês.

Dificilmente, o lugar onde Aoshima expõe seu trabalho poderia ter um nome melhor. Liberdade, a praça no centro de São Paulo famosa por ser um reduto da cultura oriental no Brasil. Aos sábados e domingos, o local é tomado por 50 barracas coloridas de vermelho e branco, que oferecem de souvenir exótico à comida típica daquelas bandas de olhinhos puxados. Em uma delas, Aoshima aguarda, pacientemente recostado na cadeira, quem admire - e compre - o que sabe fazer de melhor: Kokeshi e Daruma.

Kokeshi é uma bonequinha de tradição milenar que, segundo se acredita, traz sorte às famílias. Ela não tem braço nem perna. Apenas o tronco cilíndrico e a cabeça desproporcionalmente crescida. Aoshima fabrica mais de trinta modelos diferentes, enfeitando-os sempre com cores vivas e caracteres kanji, aqueles símbolos incompreensíveis do alfabeto pictórico japonês. Um trabalho minucioso, que requer bastante precisão para pintar todas as linhas, bem fininhas, na medida certa.

O Daruma, um rosto de olhos opacos, talvez seja ainda mais interessante. Ele funciona da seguinte forma: pinta-se um dos olhos depois de fazer um pedido, o outro permanece sem cor até que o desejo se realize. “Caia sete vezes, levante oito”, diz o provérbio que o inspirou, em clara referência à ideia de não medir esforços diante de um objetivo traçado.

Mas nem sempre Aoshima conseguiu viver de artesanato. Inicialmente, ele veio ao Brasil para trabalhar numa empresa japonesa, que faliu um ano e meio depois. Contudo o desprezo pelo fracasso - um dos insistentes traços orientais - o impediu de retomar o caminho da antiga casa. “Tive vergonha de voltar, né?!”, conta sem muito constrangimento. De lá para cá, recorreu à lavoura, deu expediente na indústria, encontrou um jeito ou outro de sobreviver. Também se casou com uma brasileira, com quem teve três filhos. Aoshima nunca mais pisou no Japão.

Há cinco anos na Feira da Liberdade, o artesão aproveita a aposentadoria para realizar o desejo da juventude. É, depois de tudo, um desobediente ou um perseverante, dependendo do ângulo em que se olha: de professor ou de Daruma. Mas que soube retribuir
oferecendo a possibilidade de cada um - ao pintar um naco de madeira ou um simples olhinho - poder escolher o que bem entender.




Um vestido de linho impecável na memória


O muro altivo de azulejo negro já foi cerca de arame, barro queimado, chão de terra batida. Hoje, não se afunda mais os pés na lama em dias de chuva, mas o mucambo ainda sobrevive nos hábitos. Há 76 anos, Zeca mora na Rua 12 de Outubro, no nobre bairro dos Aflitos. Quando não está costurando, ela passa horas a fio na calçada, em constante indiscrição aos destinos da vida alheia. Fica sentada no banquinho de madeira, “vendo o povo encher a rua de perna”, como gosta de dizer. Afeita a conversas, é sempre solícita com quem lhe bate à porta. Toc toc toc. “Pode entrar, aqui só paga a saída.”

Por dentro, a casa é muito simples; no sofá de três lugares, o tecido do forro, em estampas floridas, é o mesmo da cortina que divide a sala apertada dos demais aposentos. O teto é baixo; o telhado, aparente. Em cima da cômoda, a imagem de Santa Rita de Cássia – ganhou de aniversário em março – vela suas causas impossíveis. “Agorinha, Verônica me deu um dinheiro que estava perdido faz uma semana. Eu já peguei nele hoje cedo, e não sei onde botei”, conta, com uma dicção marcada por ênfases precisas, enquanto revira, em vão, um monte de papéis espalhados. Desde que sofreu um princípio de acidente vascular cerebral, há quase dois anos, é a filha quem vai receber a aposentadoria no seu lugar.

Quando, enfim, desiste da busca, se derrama feito criança na cadeira de plástico – a postura torta, a perna apoiada num canto mais alto. Fica contente em falar de si mesma, de ter sido uma das poucas na rua que aprendeu a confeccionar calça comprida ou de como preparou à mão o enxoval das três meninas em opala e cambraia zebrinha. “Até os casaquinhos de flanela para dormir, tudo com o viesinho, eu procurava caprichar”, diz. Apenas algumas vezes, mantém a frase suspensa: recavando palavra perdida nas gavetas da memória. Datas e nomes, em especial os mais recentes, lhe escapam com certa frequência. E isso a tem preocupado bastante.

Naquela casa, as paredes ainda estão rabiscadas por travessura de miúdos. Mas ali não há mais crianças: o neto mais novo completa quinze mês que vem. Tudo parece, quase confessadamente, remeter ao passado. E nada com tanto impacto quanto a máquina de costura reta, que fica bem no meio da sala, ocupando, se duvidar, um terço do espaço. Uma Singer autêntica, com suporte de metal rendado - um tanto desgastado, é verdade - mas ainda assim conservando certo ar de requinte. Para funcionar a agulha, nada de eletricidade: o dorso do pé precisa compassar harmonicamente o pedal de ferro fundido. Subindo e descendo, subindo e descendo. “Quando veio para a minha mão ela estava com uns cinquenta anos, do jeito que chegou deixei”, conta, apontando  os cordões remendados que reforçam a correia já velhinha. “Madrinha quem mandou do Rio de Janeiro, trabalhava em casa de família inglesa”, completa. Nunca - nunca, ouvi bem?! - permitiu que alguém tocasse nela.

Por trás dos grossos óculos de grau, os olhos orgulhosos admitem: “Costurar foi o único serviço que eu fiz na minha vida toda”. Ela interrompeu o colégio na quarta série; os estudos não atendiam às necessidades imediatas da família, pobre. Aos treze, viu no jornal o anúncio de uma venda na Rua das Pernambucanas, perto dali: contratavam-se dedos ágeis para chulear, fazer caseamento, abanhado, pregar botão, gola ou punho. “Eu não sabia nada, terminei aprendendo lá mesmo”, revela. Das primeiras tarefas de acabamento para a incursão em corte e costura foi um pulo, antes dos vinte já trabalhava por conta própria.

Naquele tempo, a 12 de Outubro era repleta de costureiras. Em poucos segundos, Zeca é capaz de nomear um punhado de exemplos. Margarida, Dona Maria, Dona Aurora, Maria do Monte, Dona Inesinha. Todas vizinhas. Nos dias atuais, resta apenas uma. “O pessoal agora compra muito roupa aprontada”, justifica, elucidando também o motivo pelo qual vê sua atividade praticamente reduzida a pequenos consertos.

De acordo com o jornalista Phelipe Rodrigues, que é especialista em moda, os tempos áureos da costura já findaram há anos. “Até a década de 1960, as lojas de tecido, chamadas fazendas, eram comuns na cidade do Recife. Hoje, há o fast fashion, mais prático e mais rápido; empreendido pelas empresas de moda que oferecem o prêt-à-porter”, no bom português, pronto para vestir. “O papel da costureira se tornou quase exótico, é um momento de exceção, em que se recorre quando há uma festa de quinze anos, um casamento. É como beber champanhe: se muito, uma vez ou outra.”

De fato, cada vestido de organdi demandava tirar as medidas do ombro, busto, cintura, quadril; fazer o molde, cortar, montar, para só então poder ser posto à prova. “Já manheci muito dia na máquina de costura”, recorda Zeca, que sempre preferiu as noites para percorrer tecidos em linha. Hoje, só recebe mesmo quem a conhece de outrora: nem a plaquinha em que se permitia ler costura-se fica mais pendurada no muro altivo de azulejo negro, que já foi cerca de arame, barro queimado, chão de terra. Três batidas na porta. Toc toc toc. “Pode entrar”. – Quanto ficou, Dona Zeca? A moça bem vestida (“mora no prédio da outra rua”) recolheu a sacola plástica, calção e saia bem dobrados, e, sem troco para vinte, saiu sem pagar. 

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Há dois anos, Zeca – que na verdade se chama Maria José Tibúrcio Duarte – enfrenta intermitentes internações em hospitais, em virtude da pressão alta e de ataques isquêmicos. “Estou me sentindo muito deprimida, porque não tenho mais cabeça para fazer o que fazia antes”, manifesta a costureira que perdeu o controle sobre quantos remédios precisa tomar. Desde então, a morte aparece obscenamente no seu discurso. Ao mencionar as pessoas que um dia conheceu (são muitas), mas que já faleceram, acrescenta sempre o prefixo finado (“que Deus o ponha em bom lugar”, logo depois). Se a memória falha, ela balança a cabeça, estala a língua, demonstra irritação consigo mesma. “Qualquer dia desses, você recebe a notícia que eu fui embora.”

A contar do nascimento, Zeca passou a reunir ausências. De imediato, dos pais. Foi criada pela avó viúva, Dona Joana Evangelista, e por Gina, a tia por parte de mãe que, a vida inteira resguardada, definhou naquela casa, compartilhando do mesmo teto, “sem botar uma vela, sem nada”. “No velório dela a funerária trouxe um véu roxo, eu mandei trocar por um branco”, relata em decoro à castidade da tia. Como a família não permitiu a realização da autópsia, a causa mortis foi condenada à dúvida. “Ela nunca se casou, nunca namorou. Abrir o corpo depois de morta seria desrespeito.”

Das recordações da mãe, Firmina Duarte, com quem “nunca tive conversa, dizem até que costurava muito bem”, guarda o dia em que ela tomou os rumos do Rio de Janeiro à bordo de um navio. “Ela veio aqui em casa se despedir da gente. Eu era muito pequena, mas – veja como são as coisas – me lembro bem do vestido que usou para viajar: todo cor de rosa, de linho. Fui abraçar, assim, pela cintura; ela segurou meus braços, para não amassar o vestido.” As lembranças do pai – na certidão de nascimento, Severino Tibúrcio Duarte – são, contudo, ainda mais inquietantes. “Ele morreu e nunca chegou a saber da minha existência”, conta, sem economizar no tom do advérbio.

Nas vezes em que as irmãs mais velhas, Célia e Zélia, eram levadas pela vizinha (a finada Dona Olímpia), para visitá-lo, Zeca era privada do passeio e tinha de permanecer sob os cuidados da avó. “Sempre fui tratada de forma diferente, e não entendia por que”, diz. “Eu me lembro, a casa era um mucambo mesmo, no canto tinha uma mesa, que ele vinha tomar café de vez em quando com de noite. Era só ele chegar que Gina me levava lá para o fundo, para ver o quintal. Tinha manga, sapotizeiro, bananeira, pé de fruta-pão, tudo que eu sabia que tinha."

O motivo de tanto esforço para minimizar a margem de encontro entre pai e filha manteve-se em segredo por todos da casa. Sobre isso, Zeca só veio tomar tino durante uma das muitas conversas de rua, em que, sentada no banquinho de madeira, viu a indiscrição do próprio destino ser escancarada por um conhecido da família. Severino era caboclo; Firmina, negra. As duas irmãs mais velhas: tez escura, cabelo crespo. Zeca nasceu com a pele branca e o cabelo claro. “A coisa melhor do mundo que achei nessa entrevista foi que nunca tive oportunidade de falar isso com ninguém.” Julguei que era uma confissão sincera. Meio sem jeito, agradeci pelo encontro, disse que voltava para mostrar o texto; quando me respondeu. “Sabe, estou até pensando em colocar a plaquinha de novo.”

Entre o sim e o não

Se é verdade que os únicos paraísos são os que se perderam, sei como devo chamar essa coisa terna e desumana que existe hoje em mim. Um emigrante volta à sua pátria. E eu, eu me lembro: ironia, resistência, tudo se cala, e eis-me repatriado. Não quero ruminar a felicidade. É bem mais simples e é bem mais fácil. Pois destas horas que, do fundo do esquecimento, trago de volta para mim, conservou-se, sobretudo, a lembrança intacta de uma emoção pura, de um instante suspenso na eternidade. Esta é a única verdade em mim. Amamos a flexão de um gesto, a oportunidade de uma árvore na paisagem. E, para recriar todo esse amor, só temos um detalhe, mas que é suficiente: um cheiro de quarto que ficou muito tempo fechado, o som singular de um passo na estrada. Comigo também é assim. E se eu amava, então, ao entregar-me, enfim eu era eu mesmo, já que só o amor nos faz sermos nós mesmos.

Lentas, calmas e graves, essas horas voltam, tão fortes, tão comoventes - porque anoitece, a hora é triste e há uma espécie de desejo vago no céu sem luz. Cada gesto reencontrado me revela a mim mesmo. Disseram-me um dia: "É tão difícil viver." E eu me lembro do tom. De outra vez, alguém murmurou: "O pior erro é fazer sofrer." Quando tudo acaba, a sede de vida se extingue. É a isso que se chama felicidade? Ao percorrer essas lembranças, vestimos tudo com a mesma roupagem discreta, e a morte nos surge como um pano de fundo em tons envelhecidos. Mudamos de opinião sobre nós mesmos. Sentimos nosso infortúnio e dele gostamos mais. Sim, talvez seja a felicidade, o sentimento piedoso de nossa infelicidade.

(...) E eis-me de novo repatriado. Penso em um menino que viveu em um bairro pobre. Aquele bairro, aquela casa! Só havia um andar e a escada não era iluminada. Ainda hoje, depois de tantos anos, ele poderia voltar para lá em plena noite. Sabe que subiria a escada com toda a velocidade, sem tropeçar uma única vez.

- Albert Camus, aos 22 anos. Como nós.

Pelo direito ao besteirol digital



Na sacada que faz um bom quadrinista, Bruno Maron arrematou: “Cézanne, o tataravô do Instagram”. Jocosamente, o designer carioca aludiu a natureza morta pós-impressionista do século 19 à atual mania irrefreável de fotografar comidas, alimentada por tantos usuários do aplicativo pertencente ao Facebook. No balão, o pensamento “as pessoas precisam (grifado mesmo) saber o que eu estou comendo agora”, traduz uma crítica sutil, por associação. E, ao que parece, o compartilhamento de informações estritamente pessoais, que vão de check-ins em paradas de ônibus a registros em velórios, tem incomodado muita, muita gente.

Em tempo, a internet já foi tratada como panaceia, já se tornou o espaço de todos os males, amém, – e, hoje, nessa demência de rotulação, a verdade é que ninguém é lúcido o suficiente para entender com exatidão a potencialidade que ela pode representar de fato. Fala-se muito em web três ponto zero, o reino da interatividade, em que todos são autores de notícia, et cetera e tal. Mas as repercussões disso tudo ainda estão sendo deglutidas. E no passo digestivo dos ruminantes. Essa espécie de perplexidade geral oferece terreno para um deslize comum: imputar supostos erros de conduta na plataforma, que é apenas uma ferramenta. Ilustrando, diz-se “a internet expõe muito as pessoas”. Não. Os usuários se expõem por meio da internet. O porquê de se expor são outros quinhentos, que pouco tem a ver com o instrumento propriamente dito. Vamos lá.

Comunicar só vem do latim o termo. A necessidade humana, em si, em muito precede o encontro das miríades gentílicas no Lácio. Ela nasce do esforço em resolver os conflitos de alcance entre os indivíduos e, evidentemente, data da origem deles. Antes de qualquer império, já havia o batucar dos tantãs, as pinturas rupestres. E, por trás disso, a procura por revelar, através de representações, estados de espírito, sensações, ideias, experiências... Num paralelo possível, é o óbvio ululante que a internet modificou o fluxo de informações veiculadas e as formas paleolíticas de interagir – mas não a natureza do ato.

A origem etimológica do termo comunicar nos oferece uma pista provocadora. Tornar comum. Numa observação mais cuidadosa, contudo, passei a entender comunicar como soerguer janelas de plural ventilação nos edifícios dos universos inevitavelmente particulares. Aprofundo em seguida.

Doutor pela Michigan State University, o professor Juan Bordenave defende que a comunicação “serve para que as pessoas se relacionem entre si, transformando-se mutuamente e a realidade que as rodeia”. Da afirmativa de Bordenave é possível inferir, portanto, que a ação comunicativa, se não deriva, ao menos está posta em correlação com determinada realidade vivenciada – que sofrerá tais mudanças. No entanto, desse vínculo inquebrantável sobrevém uma questão filosófica fundamental, a qual o professor não satisfaz: do que se trata a realidade?!

Há quase quatrocentos anos, o francês René Descartes, consciente da soberania da dúvida, danou-se a questionar a própria existência do homem. Das incursões, que o levariam à supracitada frase-monumento “penso, logo existo”, uma pergunta merece especial destaque. Qual a garantia em considerar a vida – que segue um perceptível enquadramento lógico (não voamos por dupla culpa da gravidade e da nossa anatomia, por exemplo) – algo real, se, durante o sono, as ocorrências oníricas fazem pleno sentido?! Não seria a vida, por extensão possível, uma variável do sonho?!

A Literatura incorporou essa inquietação através do non sense, recurso que se vale da exploração de cenas, a priori, absurdas, muito embora precisem fazer sentido em nome do conjunto narrativo. E chegou a um resultado conceitual interessante. Trata-se de uma obviedade (de novo), mas que nem sempre nos damos conta: em virtude até do aparato biológico, eu não percebo o mundo da mesma maneira que você, leitor, nem de qualquer outra pessoa. A grande sacada, em fim (e não enfim), se constrói por meio dessa estratégia de negar qualquer imposição da realidade, já que estranhar o absurdo (a percepção do outro) é esbarrar no “absurdo real” (a forma com que percebemos a realidade) de nós mesmos. Mais talentoso com as palavras, Fernando Pessoa abordaria esse fenômeno da seguinte forma:

Como é por dentro outra pessoa
Quem é que o saberá sonhar?
A alma de outrem é outro universo
Com que não há comunicação possível,
Com que não há verdadeiro entendimento.

Nada sabemos da alma
Senão da nossa;
As dos outros são olhares,
São gestos, são palavras,
Com a suposição de qualquer semelhança
No fundo.



Noves fora, zero: insistir na realidade – do regime único de percepção, para ser enfático – não passa de mero preconceito retórico. Por tabela, comunicar é tentar tornar comum. Aproximar ao máximo. Mas a tentativa é em parte frustrada, porque ninguém é capaz de sentir de forma genuína as motivações do comunicador ao se expressar. O contato se dá com a representação – uma imagem, uma fala, um texto, uma música – e não com o sentimento, a essência. Todo esse passeio, à primeira vista um tanto distante da discussão propriamente dita, serve para fundamentar que, no fim das contas, cada um é cada um. E, se a comunicação de fato permite mudar alguém, como levanta o professor Bordenave, é só a si mesmo (o que não quer dizer que apenas uma pessoa possa ser transformada em um processo comunicativo). Bingo.

Não há elemento argumentativo forte o suficiente para tornar ilegítima a divulgação de “irrelevâncias” na grande rede. Quem for dono da própria vida que faça o que quiser com ela. O resto é intrometimento. Até porque nem só disso vive a internet: cada qual com seu nicho. A única ressalva a ser feita é quando esse comportamento expositivo interfere em terceiros. Um exemplo claro (de outros possíveis) é dos restaurantes pouco afeitos à propaganda popular que se sentem incomodados quando os cliques, que antecedem as curtidas no instagram, atrapalham a liturgia do local. Nesse caso, por se tratar de um estabelecimento privado, com suas próprias regras e concepções, os clientes devem se adequar. Ou não consumir. Ponto.

Em suma, não é possível mensurar precisamente o que leva alguém a se expor, a não ser quando essa análise é feita pela própria pessoa – e olhe lá. De toda forma, as redes sociais permitem interromper os feeds de notícias, filtrando atualizações indesejadas. Aos incomodados, nos quais não me incluo, a opção de bloquear será sempre serventia da casa.

lições de começo de ano

lição um: a maior cagada que alguém pode fazer na vida é tomar distância das pessoas que ama afiançado no amor de uma única pessoa

lição dois: dois mil e treze tem sido um ano de perdas. mas eu nunca tive medo de perder nada.