Porque "dar uma tapa na cara da mãe" não é "passar por problemas familiares"

A cena significa movimento, o que, em geral, provoca o interesse do leitor. Lembre-se, por exemplo, da cena de abertura de Madame Bovary. Quando o romance começa,os alunos estão sentados, sonolentos, abrindo a boca, silenciosos. Aí entra o tutor conduzindo uma carteira e, ao lado, um rapaz, que chama a atenção até pelo boné exótico. O professor decide perguntar seu nome e ele, supertímido, solta um grunhido que nada quer dizer: - charlesbovarrrrrrrrrrrrry, e repete: Carlesbovarrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrry. O professor pede então que ele se levante. Na verdade, ele se levanta, e o chapéu exótico, ridículo, cai no chão e é chutado pelos colegas. Depois de todo esse embaraço volta a se sentar.

Neste momento, Flaubert apresenta o personagem, mostra como ele se comporta e deixa claro que tipo de personagem tratará no transcorrer do romance. Ou seja, é Charles Bovary, o futuro marido de Ema Bovary. E mostrará, ao invés de dizer, que se trata de um homem fraco, sem reações, que se deixa levar pelos outros. Basta pensar nisso para entender a diferença entre técnica e conteúdo.

Na época de Madame Bovary era comum se escrever assim: “Na cidade de Ruen vivia um médico tímido, fraco e trapalhão, tímido e incompetente chamado Charles Bovary. Ele estudou na escola X, onde era motivo de brincadeiras. Foi criado somente pela mãe, porque o pai morreu cedo.”



Raimundo Carrero, para Pernambuco


Texto disponível na íntegra em
http://www.suplementopernambuco.com.br/index.php?option=com_content&view=article&id=485%3Anao-se-acanhe-ficcao-e-lugar-para-conversa&catid=16%3Araimundo-carrero

Candidato vitalício ao Troféu Rodin





Quando nem precisa argumentar

Brilho lembrança de uma memória eterna

Caiu do ar? Destacou-se da terra? Não sei; sei que um vulto imenso, uma figura de mulher me apareceu então, fitando-me uns olhos rutilantes como o sol. Tudo nessa figura tinha a vastidão das formas selváticas, e tudo escapava à compreensão do olhar humano, porque os contornos perdiam-se no ambiente, e o que parecia espesso era muita vez diáfano. Estupefato, não disse nada, não cheguei sequer a soltar um grito; mas, ao cabo de algum tempo, que foi breve, perguntei quem era e como se chamava: curiosidade de delírio.

— Chama-me Natureza ou Pandora; sou tua mãe e tua inimiga.

Ao ouvir esta última palavra, recuei um pouco, tomado de susto. A figura soltou uma gargalhada, que produziu em torno de nós o efeito de um tufão; as plantas torceram-se e um longo gemido quebrou a mudez das coisas externas.

— Não te assustes - disse ela -, minha inimizade não mata; é sobretudo pela vida que se afirma. Vives: não quero outro flagelo.




- Machado de Assis