A lógica da homofobia




Antes de tudo: este texto nasceu da repugnância diante dos disparates reproduzidos com o ímpeto do fordismo retórico de redes sociais e devorados com uma passividade, no mínimo, bestializante. É, em suma, a síntese do encontro entre lágrimas e vômito.

E – se me permite o intertexto – no mesmo espaço onde suspira a monodia da ingenuidade, vem a absorção simbólica que morde.

É engraçado como o absurdo e o óbvio revezam a mesma cadeira no diálogo. E é assustador constatar que, na medida em que conhecemos as coisas, mais ainda – por paradoxal que seja – cresce a nossa ignorância diante do mundo e das pessoas.







Tomemos por base o seguinte: uma ação, de qualquer natureza, deve ser considerada legítima, caso todos os envolvidos estejam em comum acordo, e não haja qualquer artifício com o intuito de ludibriar ou enganar alguma das partes. No caso de um relacionamento, se não há imposições na política entre os parceiros, não existe problema algum. Perfeito. Sim, falo política entre os parceiros o que chamam amor. Ou, melhor dizendo, a forma de vivê-lo. Mas o importante é saber que isso independe de configuração sexual. Claro. E que, se recorresse à convenção, eu seria piegas já de início.

Voltando ao que importa. Um relacionamento, por razão óbvia, só interessa a quem está se relacionando. Os de fora – seja pai, mãe, avô, afilhado, professor, policial, vizinho, patrão ou padre – não têm absolutamente nada com isso. Nada. A antítese não passa de provincianismo, porque se faz suporte para o intrometimento covarde; para o seqüestro do direito à escolha. É a emboscada para a liberdade, atolada até o nariz no lamaçal de sussurros e escarros de séculos que já deveriam ter passado.

Sim, uma coisa: não há defesa para frescura. Ponto. Mas frescura também não está necessariamente vinculada à sexualidade. Tanto pode se manifestar na bichinha despudorada, quanto no machão-afetado-que-disfarça-insegurança-cuspindo-na-cara-dos-frangos.

Incomodar-se com a opção sexual dos outros é não conseguir se desprender do ranço dos valores tradicionais. Todas aquelas instituições, tratadas pela Psicologia Social, ou – se melhor lhe provir – tudo o que Roland Barthes chama mito: processos que se esvaziam em sua historicidade, sendo ela substituída por uma falsa naturalização. Só que os mecanismos se tornam elípticos. Desaparecem. Os ditos são impostos como verdades inerentes; mas, na realidade, não passam de construções históricas. E, hoje, não superam a condição de aforismo caduco. Não precisa ser nenhum supra-sumo da antropologia para saber que a noção de família e de sexualidade mudou completamente no derramar da História. Só pra ilustrar, só pra ilustrar: a propriedade privada, ao estabelecer a necessidade de herança, pariu o conceito de casamento monogâmico. Há registros, também, de sociedades que estimulavam – até por uma questão bélica de incentivo à proteção recíproca entre os membros do exército – a homossexualidade. Enfim, é fácil perceber que nem sempre a ética homofóbica, que dizem ser em defesa da “tradição” de hoje, correspondeu ao modelo de conduta social. Ainda bem.

Mesmo assim, não falta quem brade: “não é natural que dois seres do mesmo sexo mantenham relações”. Essas mesmas pessoas, no entanto, não percebem que fica suspensa a questão: “O que se pode definir por natural?”. Golfinhos e veados (e, daí, a alcunha) são exemplos de membros-integrantes-da-fauna que praticam relações homossexuais. Um absurdo, não é?! Claro que não. Nem é absurdo, nem é exceção. Cisnes-negros, bisões, alguns tipos de macaco, e vários outros animais – é só pesquisar, o Google está aí para isso –, também são adeptos do sexo entre iguais. Será que eles, que, até onde se sabe, ouvem apenas os acordes do instinto, são antinaturais?! Ora, seria de uma ironia sem tamanho. Pois, assim, nem a própria natureza é natural.

É duro para alguns, mas sexo nunca foi só para procriação. Isso vale para qualquer espécie, inclusive, a nossa. E mesmo que o fosse, não faz parte da configuração própria humana (e isso que nos diferencia dos outros) subverter as questões intrinsecamente instintivas, de acordo com vontade/necessidade?!

A História já assistiu a algumas vezes em que uma pessoa, por si só, achou que poderia decidir por todos qual é a melhor forma de viver. E, a isso, chamou-se fascismo (ou, que os verdadeiros intelectuais do Brasil não me lancem à fogueira, socialismo). Respeitando-se o limite, que é o outro, cada um que sabe de si. Sempre que um homem acredita ser seu dever impor méritos que são individuais a outras pessoas, o mundo – valendo-me da graça literária de Helena Walsh – retrocede em quatro patas.


Era só isso que eu tinha pra dizer.

Arte de alma fragmentada e mãos sujas de carvão


Rua Agenor Lopes, número 100. Boa Viagem, bairro da Zona Sul do Recife. Embora os vizinhos acreditem piamente em se tratar de uma alfaiataria, o endereço corresponde, na verdade, ao ateliê do artista plástico pernambucano Gil Vicente. Nascido em 1958, ele é conhecido por explorar os jogos de contraste com uso de nanquim ou carvão sobre papel ou tela. Além da pintura; gravuras, fotografias e esculturas somam-se ao fluxo produtivo das suas veias artísticas. Mas nada de linha, tesoura, fita métrica ou agulha. Gil não tem frescura para produzir, embora prefira pintar à luz do sol – não por uma questão transcendental – porque dá para enxergar melhor mesmo. Parte da sua obra ornamenta as paredes do local de trabalho, onde foi realizada a entrevista coletiva com quase uma dezena de estudantes de jornalismo; outras partes ocupam galerias e exposições em todo país.

O salão é amplo e predominantemente alvo, tomado por três mesas que, se em uma sala de jantar, acolheriam com folga seis pessoas cada uma. Por cima delas, estreitam-se pincéis e tintas, arranjados de forma milimétrica por tamanho e matiz, respectivamente; além de materiais com aparência de rascunho ou de pintura inacabada. Os pincéis, inclusive, acomodados em recipiente adaptado ou próprio, soam como flores em jarro. Não faltam, também ali, armários, prateleiras e cavaletes. Ao fundo, sobre um balcão, descansam dezenas de CDs, organizados por estilo musical, e um aparelho de som quebrado. A velocidade do receptor está desregulada: ele recolhe antes que se possa pôr-lhe o disco. A luz, das quase onze horas de uma manhã de novembro, entra com facilidade. A parede lateral do salão é composta inteiramente por ferros espaçados, formando paralelos verticais, com perpendiculares suficientes para a sustentação. Os entrecortes são preenchidos com peças de vidro completamente transparente: carta branca às radiações matinais. O chão é revestido de azulejo, daqueles por sobre os quais devem evitar andar os idosos. No canto da sala, em frente a uma escultura com esqueletos de assentos escolares sobrepostos, foram alocados bancos de todo tamanho, que, juntos à solitária cadeira de balanço – exclusividade do artista – formavam um círculo.

Gil Vicente apresentou-se sem extravagância: camisa social rosa claro, calça comprida preta de algodão e sapato simples de uma marca nacional. O relógio digital samba no seu agitado braço esquerdo. Aliás, suas mãos são duas bailarinas. Não só pela leveza, mas, principalmente, pela inquietude. Elas vão se encaixando às falas, como dançarinas em um ballet de Tchaikovsky sincronizam movimentos singelos à modernidade da melodia. Piruetam, se estendem, se agitam e, com a mesma intensidade, relaxam nos joelhos. Arrancam os óculos do rosto, percorrem o nariz, tapam a boca, esticam os lábios. Acariciam o queixo, e, depois, se escondem no cabelo curto e grisalho. Isso, enquanto o artista se balança com suavidade rítmica na cadeira. Parecia estar bastante confortável ali, em corpo e espírito. “Eu adoro conversar, contanto que paguem meu almoço” – brinca, e dá a deixa para se iniciarem as perguntas – “Só vou levar esse telefone, para ele não tocar... Pronto! Estou pronto”. E pronto se mostraria nos cento e cinqüenta e seis minutos seguintes.

Todo o tempo, Gil Vicente parece dialogar consigo mesmo. Com freqüência, lança suas teses, independente de título de complexidade, e – dentro de um permanente exercício de auto-retórica – faz com que e antítese repouse ao seu lado. Para ele, não interessam as conversas prontas. Os diálogos pré-fabricados, revolvidos, que vêem esvair-se o insípido sabor que lhes restam em cada vez que são requentados. Mesmo assim, não deixa de sustentar impressionante paciência para as questões supostamente triviais e repetitivas. Cada pergunta se reveste de desafio, que ele conduz com a humildade – por vezes, sarcástica – de quem diz ter pouca leitura. Mas nunca foge do jogo. Transvestido de aparente simplicidade, faz com que todos ali adentrem por novas searas que ele, autonomamente, sugere. Emenda um assunto no outro, esquece do que foi perguntado. Afinal, dentro de um turbilhão de idéias, em meio a tantas bifurcações e vielas existenciais, para Gil Vicente – e seria para qualquer um – é muito fácil se perder dentro de si.

Presente ao encontro também estava a professora da Universidade Federal de Pernambuco, Cristina Teixeira, responsável tanto por tê-lo idealizado, quanto por seu início. O corpo era o centro em torno do qual flutuava a questão de abertura. De natureza desconfiada, Gil Vicente reagiu de imediato: “Não sei que porra é esses negócios, não. Tu não sabe que eu não tenho leitura?! Eu só vou falar besteira”. E até o teria feito, se o cerne fosse os aspectos biológicos do objeto. Mas não era. A concepção sugerida vai além de células, tecidos e sistemas; aloja-se nas relações consigo e com o mundo. Desde o começo, Gil Vicente deixa claro que nutriu medo do corpo, o dele e o dos outros. “Eu era só introversão. Tão interno que não percebia as coisas que aconteciam, como os períodos que chovem mais. Se bem que as mudanças de estação, em Recife, são muito poucas”. E só mudou, conta, quando passou a praticar esportes coletivos. “Antes, eu fazia natação – que é sozinho, com a cabeça dentro d’água, uma coisa uterina demais – mas comecei a jogar futebol e voleibol. Isso me possibilitou ver as coisas de fora. Me deu uma compreensão maior; para, inclusive, poder me relacionar melhor com a parte que não é corpo, minha e dos outros”.

Diz ter dificuldade para se relacionar. “Até hoje, nunca casei, nunca tive coragem de ter filho”. Sempre teve inabilidade de troca, na dinâmica com as pessoas, embora garanta estar melhor. “Estou fazendo terapia mais uma vez, isso me ajuda. Há um núcleo que não muda nunca, mas a gente pode mudar o jeito de olhar pra esse núcleo e de olhar pra fora”. Ele esteve na Alemanha, em 1999, para um workshop, organizado por uma brasileira em parceria com o Museu de Arte Moderna da Bahia. Participariam do evento cinco compatriotas e uns tantos alemães. “Eu fiquei muito contente com o convite. Era tudo de graça, a gente viajou e ainda teve um apoio para comprar material de trabalhar. Mas eu acho que estava com uma expectativa maior. Achava que deveria sair dali com o lucro profissional muito grande”. Mas havia alguns inconvenientes: o hotel ficava na Alemanha Oriental, “que ainda estava muito lascada, e era longe pra caralho do lugar aonde a gente tinha que ir”. Era preciso andar meia hora para chegar à estação de trem; esperar mais pelo trem; e, depois, ainda pegar metrô. “Fui pegando ar com esse negócio, fui achando que a mulher era muito pilantrosa, e comecei a infernizar a minha vida e a dos outros brasileiros, mostrando a eles as condições precárias as quais estávamos submetidos. Ou seja, estraguei o workshop pra mim e para eles. Porra, me arrependo pra caralho disso”. O constrangimento foi tal, que, ao fim, a organizadora sequer ensinou-lhe o caminho para o aeroporto. “Ainda bem que hoje eu percebo que foi horrível, gostaria de pedir desculpa à mulher”.

À primeira vista, soa estranho ouvi-lo contar-se retraído. Tímido muito mais. “Mas não é a toa que eu escolhi o trabalho de arte como profissão”, avalia. A solidão inerente ao processo criativo adequa-se ao seu estranhamento diante do outro. E o ofício sempre foi sua companhia. No entanto, Gil é dono de uma conversa frouxa, longe de ser por conta da consistência em si do que diz, mas pelo deboche maduro que lhe flui boca a fora. Fala a estranhos como a um íntimo; não economiza nos posicionamentos nem na linguagem irreverente. A dificuldade de se relacionar, definitivamente, não aflora em goles curtos de convivência. Por mais de duas horas, mostrou-se simpático e atencioso. Fez questão de interromper a entrevista para saudar os menos pontuais; e oferecer, sistematicamente, água para aqueles que ouviam mais do que falavam. Mas também não deixa seus interesses por baixo dos panos. “Não pensem que sou bonzinho. Eu acho ótimo entrevista, porque estou divulgando meu trabalho, fazendo propaganda para pessoas significativas em seus meios”.

Como artista, Gil Vicente engatinhou na Escolinha de Arte do Recife, que fica na Rua do Cupim, no Bairro das Graças. Ficou lá dos doze aos dezoito anos. “Me fez muito bem. Não é uma escola para formar artista, é para formar gente: para desenvolver a personalidade de cada um”. Antes de sair da Escolinha, aos quinze, passou a freqüentar também os ateliês de extensão da antiga Escola de Belas Artes. Estudos que se esticaram por seis anos. “Ia lá duas, três vezes por semana. Fazia exercício de observação dos objetos, do homem, porque queria entendê-los melhor. Em figura eu era muito fraco, mas com exercício você vai melhorando”. Durante a infância e a adolescência, morou em Casa Forte, próximo ao Museu do Homem do Nordeste, antigo Museu do Açúcar. Por lá, pôde ver muitos elementos populares: rótulos, pinturas, brinquedos. “Fiquei muito impressionado com como aquilo me pegava graficamente, pictoricamente. Minha formação foi muito pelo olho. Não foi conceitual. E só há essas formas para você desenvolver uma linguagem artística pessoal”.

Quando tinha idade para prestar vestibular, já participava de salões. Conseguia dinheiro com a venda de trabalho. O único curso disponível na área em Recife era o que se chamava, antes, Comunicação Visual. “Englobava design gráfico, design de produto, e arquitetura. Eram as coisas mais próximas de desenho”, conta. “Se eu fizesse arquitetura, ia passar cinco anos cursando, depois não ia querer perder esses cinco anos. Terminaria fazendo uns bicos em arquitetura, e me dividindo”. Por isso, não quis saber de faculdade. “E eu não serviria para outra coisa. Já sou tão rachado interiormente, que qualquer divisão a mais eu me lasco”. Mas Gil Vicente não é rachado como o solo desbotado do semi-árido de Pernambuco, sua pátria. Onde os hiatos do chão suscitam uma esterilidade aterradora. É dividido como terras dilaceradas pela agitação harmoniosa das águas; mas que, por elas, são unidas em seus próprios fluxos. As ilhas que fazem dele residência são férteis pelo dinamismo e integração. Sensível pela fluidez própria da alma de artista.

Aos vinte e dois anos, foi para Paris. “Ganhei uma bolsa: passei seis meses lá e fiquei logo agoniado para voltar, não pedi renovação”. Foi o maior tempo que esteve fora. “Minha vida é aqui, meu lugar é aqui. Lá fora, eu fico alterado, não me reconheço direito. A pobreza que tem lá não me incomoda como as daqui, porque não me sinto responsável; do mesmo jeito, não desfruto das belezas, porque não são minhas”. Mas tudo isso não apaga ou diminui as proporções do seu encontro com a arte no exterior: “Vi ótimas coisas em Paris. Gosto muito de Picasso e puder apreciá-lo bastante. E também a alguns americanos, que, a essa altura, já estavam com a sede da cultura do mundo”. Quando voltou, no entanto compreendeu que suas referências eram mesmo locais. Pessoas que se alimentavam no modernismo e que, contudo, não haviam virado as costas para o velho continente. Brennand, que estudou na França, e José Cláudio, na Itália, são partes delas. Por sinal, José Cláudio – ou Zé Cláudio – teve muito importância na carreira de Gil Vicente. “Eu o tenho como ídolo. Primeiro pelo trabalho, que sempre foi uma referência. Coisas que eu olhava e aprendia muito; depois, pelo contato com ele, o que fala sobre arte. É um erudito: ao contrário de mim, leu tudo. E continua sendo um cara simples. É uma figura; muito autêntico”, comenta. Hoje, os dois são amigos e trocam experiências. “Um dia, eu estava na casa dele, quando chegou o correio. Era para entregar o catálogo de um artista muito ruim. Mas era uma coisa que a pessoa que não é do meio olha e pensa que é legal. E isso é até bom, porque aquele quadro a tocou, mas o trabalho era muito ruim mesmo. Zé Cláudio viu e comentou: ‘é importante a gente sempre olhar essas coisas, para se lembrar do que não se deve fazer’”, recorda.

Mas não pára por aí: Cícero Dias, Vicente do Rego Monteiro, Paulo Bruscky, Reynaldo Fonseca, Ismael Caldas e Montez Magno formam também o arsenal de inspiração do conterrâneo Gil Vicente. “Montez Magno teve uma exposição que me impressionou muito, de pintura de barracas de festas do Nordeste”. É a mostra na qual o artista de Timbaúba celebra o fascínio da forma, explorando a estética geométrica. “Eu nunca cheguei a ver uma ruim. Pode ter pior ou menos boa, mas ruim não tem”, admira.

Quando voltou de Paris, Gil Vicente deixou-se consumir por uma depressão, alimentada pelo fim de um relacionamento amoroso. A crise reprimia a produção criativa. “Ia ter o Salão de Arte do Estado de Pernambuco, mas eu estava sem conseguir trabalhar”. Foi quando pesou a importância da pessoa que, talvez, mais concentre a admiração dele: seu pai. “Ele me disse: ‘meu filho, tome isso como um desafio. Se dedique. ’ Pra mim, foi muito bacana esse discurso dele, por isso preparei três trabalhos”. E através dessas obras conseguiu ser premiado em 1981. Foi justamente no início da década de oitenta que passou a convidar as pessoas ao seu ateliê, para posar. “Não gostava de fazer a partir de foto, porque só tem uma informação. Com a presença, você tem milhares de informações o tempo todo”. Nesse período, começou a sair mais de dentro de si. Romper o casulo que o mantinha em universo próprio. De lá para cá, percorreu o Brasil com sua arte.

Em 2010, Gil Vicente expôs duas obras na 29ª edição da Bienal de São Paulo, que carrega por título um verso do alagoano Jorge de Lima, autor do poema Invenção de Orfeu: “Há sempre um copo de mar para um homem navegar”. Nela, há a síntese do tema da mostra, que relaciona arte com política. A viga-mestre da proposta é discutir a possibilidade de atingir o entendimento do mundo, através das interpretações subjetivas exprimidas. Nesse sentido, o trabalho do pernambucano é pura catarse. Envolve as pulsões humanas mais fortes: o sexo e a violência. Em Suíte Safada, série de 2007, e em Inimigos, de 2005, Eros e Tânatos caminham de mãos dadas. Para freudiano nenhum botar defeito.

No primeiro citado, Gil aproveita os espaços livres entre as palavras dos livros para criar, com nanquim, cenas pornográficas. “Pode-se pensar em uma escala na arte: sensual, erótico, pornográfico e pervertido. Esses trabalhos são pervertidos pelo próprio processo em que acontecem. O contorno da figura é o espaço em branco, desenhei sempre por uma sugestão. Então, somente pelo fato de perverter o sentido daquela página, o desenho já começa a ser escroto”. Suíte Safada serve para contradizer a auto-avaliação do artista: “Depois da arte moderna e do pós-moderno, acho que tem tantas possibilidades de se trabalhar, que há espaço para todo mundo. Eu, por exemplo, só uso técnica antiga. Não gosto de misturar, porque me atrapalho. Não gosto de pesquisar materiais diferentes, porque me distraio. Procuro não inventar nada inédito. Pra mim, já é muito duro trabalhar com o que existe. Vou procurar inventar material novo?! Perco o centro do que me interessa no trabalho de arte”.

O erotismo e o pornográfico são marcas presentes na vida do artista, que não faz o menor esforço para torná-las arrefecidas. Tanto que delega, em seu ateliê, uma parede exclusiva para pendurar os objetos em que se suscitam conotações sexuais mais afloradas, por assim dizer. “A parede é só de putaria. Comecei com a caixa de lenço de papel, que tem uma abertura meio oval, e um corte no meio; e escrito Kiss. É um negócio muito acintoso. A embalagem do queijo polenguinho é um cacete com camisinha. Uns arames que eu achei na rua, que parecem uma cabritinha com o rabo levantando e o cara atrás. Toda coisa que acho meio safada, coloco ali. Outras pessoas acham também e trazem para cá”, se diverte.

Imagens de Suíte Safada (2007)
Já a série Inimigos é toda composta por autorretratos, nos quais Gil Vicente está a instantes de se tornar assassino de grandes personalidades da política. “Não quis desenhar depois do tiro, porque eu ia ter que fazer a cabeça estourando, ou sei lá o quê. E isso ia virar uma coisa espetaculosa. Desviaria a atenção do principal. O desenho é mais violento como está, sem ser tão repulsivo”.

Sem dúvida, sua arte é clara. Mas do que isso, sua arte é crua. Não existem enredos paralelos ou mensagens subliminares. Nela, acende um quê do super-homem idealizado por Nietzsche, que, fazendo uso do poder que lhe cabe, pode impor-se ao mundo e a suas mazelas. No alto do ateísmo de Gil, seus personagens habitam terras de iniqüidades semelhantes à lasciva Gomorra bíblica: o campo das decisões públicas. E também ali, como em Gomorra, seu criador faz questão de exterminá-los. Mas o genocídio, dessa vez, representativo, é mecanismo puro de contribuição ideológica. A arte materializa o que não dá para ser real. É, portanto, o atestado das mãos atadas; da pequeneza diante dos sistemas impostos. Só resta, ao autor, descontar nas representações.

Aí, no entanto, não há novidade. Quando não se pode destruir o réu, destrói-se sua imagem; põe fim à sua memória: é a chamado morte em efígie. Episódios assim já foram explorados artisticamente. Em 1965, Gilles Aillaud, Eduardo Arroyo e Antonio Recalcatti compuseram oito quadros realistas, nos quais praticavam uma série de atrocidades com Marcel Duchamp, expoente do dadaísmo. Pintado entre murros, torturas e rolamentos escada abaixo, Duchamp – que propunha a morte da arte – foi alvo da ironia conveniente ao itinerário da arte na história. A violência, entretanto, era própria das idéias que permeavam as resoluções políticas da época de permanentes conflitos entre esquerda e direita. Para as mudanças, só interessavam armas nas mãos. E é esse resgate que Gil Vicente proporciona ao seu público. Um retorno às praticas revolucionárias, diluídas no tempo. Esquecidas. Inimigos faz ecoar a questão: “onde estão os subversivos?”. Mas o faz tendo conhecimento da resposta: “no poder”. E com ela, o asco diante da política que vê mudar a face dos seus agentes, mas não a natureza de suas ações.


A irônica vingança a Marcel Duchamp, principal nome do Dadaísmo ou da antiarte.
A série nasce da tomada de consciência de Gil Vicente. Uma espécie de epifania datada em 2005. Assim, o primeiro desenho foi o de Bush; depois, Lula. Até ali, se queria fazer uma morte diferente para cada um: Bush foi com revólver, Lula foi com a faca. “Mas eu pensei, dessa forma vou suscitar um monte de associações nas pessoas, que não têm o menor interesse. Nem eu ia dar conta de criar essas associações muito bem resolvidas para que o espectador pudesse entender o que significava. Então decidi só usar arma de fogo, mas não quis refazer o desenho de Lula”, explica. “Escolhi matá-lo na faca pela decepção que eu estava. Por ter acreditado tantos anos em uma pessoa que quando chegasse ia botar um pau muito duro e grande na mesa, e dizer ‘agora é assim’. E o país mudaria. Não mudou porra nenhuma. Deu uma esmola por ali, botou algumas máquinas em hospital, mas é muito pouco”, comenta. Além deles, Fernando Henrique Cardoso, Eduardo Campos, Jarbas Vasconcelos, Ariel Sharon e Ahmadinejad são vítimas da série, que não poupa nem a realeza britânica – na figura da rainha Elizabeth II – nem a Igreja Católica, com Bento XVI. “Eu sei que não adianta matar. Mas o esquema é cada vez mais escroto, os bancos acumulam uma quantidade de dinheiro absurda. E outra: há um monte de acordos por aí, que a gente não tem nem idéia que existe; um monte de lobista trabalhando que você não conhece quem é o cara. O que eles fazem é uma violência muito maior que uma guerra. Então, não posso achar que isso seja menos violento que matar um canalha desse”, justifica.

Toda a intolerância expurgada em arte é resultado da realidade ao mesmo tempo exposta e negligenciada sem cessar. Das feridas abertas na própria sociedade. “Eu acredito que o Brasil ainda tem, pelo menos, mais 30 milhões de pessoas muito pobres e miseráveis. Ainda tem gente que come lixo, e gente que nem lixo tem para comer. Por que é que a gente pode um monte de coisa e essas pessoas não?! Não tem explicação. Tem gente que diz: ‘porque ela não estudou’. Vai à merda, caralho! Ela não teve desde cedo oportunidade, porque não deram, e é obrigação dar. Então, não me conformo com isso. Por isso, parei de votar. Eu acho até que, hoje, votar é um crime. É cumplicidade. Você assina um papel onde tá escrito ‘autorizo fulano de tal a roubar dinheiro público, sob proteção da lei, durante 04 ou 08 anos’. Eu não vou escrever isso”. Para ilustrar, Gil Vicente relata: “Tenho um amigo publicitário que me disse ‘Gil, não atendo mais governo. Fiz uma peça com alguns filmes para uma estatal. Custou um milhão de reais’. Eles disseram. ‘Bom. O trabalho está pronto, a gente vai pagar. Mas você me dá um recibo de três milhões’. É indecência roubar um real, quanto mais essa quantidade?! E por que é que a gente acha que o país está melhorando? Melhorando para quem, entende?! Você ser um péssimo administrador tudo bem, mas roubar dinheiro público é de uma escrotice inominável. Deveria ter prisão perpétua para essa gente”.
O trabalho inteiro é realizado em carvão sobre papel, que não tem cor. A idéia é que nada distraia a atenção do conteúdo. O desenho é em escala real. O tamanho natural é para que o conjunto possa abraçar o espectador com mais veemência. “Se fosse com desenhos pequenos, isso não aconteceria. Não tem cenário nenhum. E eu fiz a opção de fazer em papel, porque todo mundo tem mais intimidade do que com a tela”, explica. Além de pela familiaridade, o papel poderia ter outra serventia: limpar a sola do sapato de Gil Vicente, depois de ter pisado tanta vezes em sua esperança moribunda frente às expectativas de mudança social. “Eu não vejo melhora. Não acho que há possibilidade do mundo mudar. Li muito pouco na vida, mas eu sei que a história sempre foi assim: o bolo é entregue para poucos, o resto se arromba. Desejo que mude eu tenho muito; esperança, nenhuma. Mas são duas coisas diferentes”.
Inimigos só é exposta completa e também só dessa forma pode ser adquirida. “No começo, em Recife, abriu com a possibilidade de vender cada desenho separado. Ainda bem que não saiu nenhum. Logo eu disse: ‘vamos mudar’, porque percebi que o trabalho era o conjunto todo, não a unidade. Porque a pessoa vê um desenho só, pensa que é implicância particular. Mas esse sentimento é em relação ao que as pessoas significam; o que representam enquanto poder, enquanto instituições. Eu matei o papa, não por ele, mas por conta do significado da Igreja. Eu respeito qualquer pessoa, mas pela Igreja eu não tenho o menor respeito. É uma entidade que tem todas as possibilidades de incentivar uma alteração no mundo. Mas não faz porra nenhuma e até bota para fora quem tiver alguma boa intenção. Excomunga”. Mas não são todos que percebem o espírito da composição; há, inclusive, quem sequer reconheça os personagens. “Para a primeira exposição, fiz uns cartazes de rua que tinha o desenho da rainha Elizabeth, além da data da inscrição, do local. Para divulgar. Esses lambe-lambes que botam em muro. Mas o desenho era reproduzido no tamanho natural, 1.5x2m. Em poucos dias vão botando outros por cima, mas é legal. Nesse tempo, decidi ir voltar a jogar voleibol, e reencontrei um amigo, que disse: ‘fazia tempo que tu não aparecia’. Respondi que andava trabalhando, ele falou que estava me acompanhando: ‘Tem até um cartaz na rua que tem você assaltando uma velhinha’”, relata sorrindo.

Imagens da série Inimigos (2005). Implacável, Gil Vicente percorre a frieza cruel da lâmina no pescoço de Lula ao tiro pelas costas da coroa Britânica.
A exposição da Bienal, em si, alcançou repercussão superlativa. Além da polêmica ambientalista gerada pelos urubus de cativeiro presos à arte de Nuno Ramos, as sugestões homicidas de Gil Vicente causaram tremenda reação nos espectadores, apreciadores ou não. “Muita gente acha que eu fiz o trabalho para Bienal, para chamar atenção. Não tem nada disso: nove, dos dez desenhos, são de 2005”. A Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) de São Paulo pediu a retirada da exposição, alegando apologia ao crime. Quem pensa ter sido esse um dos pontos baixos para o artista está enganado. “Sem essa coisa da OAB, meus desenhos não teriam tanto destaque. A imprensa gosta de polêmica, isso que chamou atenção. Felizmente, não conseguiram retirar o trabalho, e o negócio terminou sendo proveitoso para mim”. E muito. Antes das manifestações, o conjunto custava cento e cinqüenta mil reais; hoje, custa quatrocentos mil. “Mas as galerias ficam com metade. E, quando dá desconto, divide com o artista também, o que é um absurdo”, lamenta.

Para Gil Vicente, tentar impor limites às artes representa uma tentativa de atrofiar a intensidade das expressões do homem. “O que fiz, ali, foi uma ficção, não uma realidade. Eu pergunto o que é pior: a minha ficção ou a realidade que as pessoas que dirigem o país promovem e mantêm? Então, acho que qualquer ato na vida real é muito pior que uma ficção, por mais violenta que ela possa ser.” O homem deve, portanto, ser a preferência do homem. Sendo assim, nem se faz necessário dizer que, para os urubus, o artista nem dá trela. “Matar passarinho é crime inafiançável, mas não se fala em uma Sociedade Protetora dos Homens. Estou cagando para mico-leão dourado, que acabe a espécie! Para foca não-sei-de-onde, para o desgelo da calota polar. Fodam-se! Se tiver uma pessoa com necessidade, é prioridade”.
Apesar de se postar radicalmente contra os grilhões da censura, Gil Vicente não é completo adepto da liquidez artística pós-moderna. “Se algo não for legitimado, não é arte”, afirma. “Depende do que o circuito acha daquele trabalho e depende da relação que o espectador estabelece com ele. Sem público, só resta o prazer pessoal. É uma coisa esquisita, mas é isso”. Diz, inclusive, ser possível estabelecer uma escala artística. “Não é que haja uma arte boa e uma ruim. É que existem coisas melhores que as outras”. Sua obra, no entanto, não discute a política interna do sistema político da arte. Da sua experiência no meio faz o seguinte relato: “Eu quero dizer que nunca participei de nenhuma sacanagem de um esquema de arte. E não tenho notícia – pode ser só falta de informação – que em alguma seleção tenha havido desvio, arrumadinho, para fulano ganhar”, e completa estranhamente, “mas é um sistema tão humano quanto outro”.

Dois caminhos distintos precisam ser trilhados por alguém que queira fazer arte: o da maturação da sua obra; e o da carreira. Em uma frente, é preciso desenvolver expressividade própria; na outra, se faz necessário integrar o circuito e, com ele, seus salões, exposições e prêmios. “É comum os artistas, quando estão se lançando, procurarem os que têm mais estrada. Eu fui muito bem recebido por todos. Hoje, eu também recebo com maior prazer”, explica Gil Vicente. Assim, na área do ateliê, de um aposento que funcionava como escritório – usado para guardar arquivos, rótulos, fotos dos trabalhos – fez-se espaço para exposições de outras pessoas. “Eu, junto com Renato Valle, Eduardo Frota, Manoel Veiga e Marcelo Silveira, formamos um Conselho para escolher quem convidar”. O lugar se chama Sala Recife. Não há fins financeiros: o trabalho é voluntário e tem objetivo único de promover as artes plásticas. “Não tem grana nenhuma. Se a pessoa for de fora tem que pagar a passagem”. Mesmo assim, a Sala já abrigou artistas da estirpe de Paulo Whitaker, Rosângela Dorazio, Fernando Burjato e até José Cláudio. “A gente abre para visitar uma vez por semana, na quarta-feira. Mesmo assim não vem ninguém”, conta.

Para Gil, a baixa visitação tem justificativa: “Vem pouca gente, porque a divulgação de arte, basicamente, é no jornal, que está em crise. Na TV, aparece pouquíssimo”. Na década de 80, muita gente visitava exposição. As aberturas eram sempre lotadas e era comum abri-las com tudo vendido. Hoje, se fecha e não vendeu nada. Naquela época, a arte era divulgada na TV também. A Rede Globo possuía galeria em São Paulo e promovia o Salão de Arte Global em vários estados do país. O público era estimulado. Comprar era símbolo de status. “Se você pegar o trabalho mais estranho de arte contemporânea, botar o Jornal Nacional, Fantástico, Faustão e Ana Maria Braga, com o Louro José dizendo ‘este trabalho é muito bom mesmo’, todo mundo compra”. Mas o próprio Gil Vicente não paga pela arte dos outros. “Eu troco”, justifica. “Cristiano Lenhardt, que expôs na Galeria Amparo 60, fez as melhores litografias que eu já vi. Perguntei se ele topava trocar, ele topou”, relata.

E é assim que Gil Vicente vai respirando arte; que, por sua vez, sobrevive dele. Juntos vão tocando a vida. Sob os pés, fincam-se as raízes pernambucanas. Sobre as cabeças, os urubus coletivos sobrevoam-lhe o imaginário transposto em sua obra. Entre os dedos, os pincéis são as armas de combate; e, nas mãos, o que sobrou do carvão substitui a pólvora. Fica, ali, por onde houver qualquer pedaço do pintor, a impregnação viscosa do ar, que rumina uma certeza: a de que, para o artista, a dúvida é sempre melhor. Na medida em que os trilhos avançam por entre as perguntas novas e as de sempre, Gil Vicente vai se conhecendo ainda mais. Vai associando cada palmo de terra do seu espírito fragmentado, em constante exercício de aprendiz. A cada entrevista, o homem, que não se diz ligado à literatura, faz uma nova leitura de si. E despeja conteúdo para vários livros.