todos os eus, o eu


-  Na verdade, não sei como dizer isso, mas há uma contradição em termos em se dizer: “pensamento que se repete”. Ora, o pensamento não se repete; só se pensa a partir do impacto de uma coisa nova; desde que se repita, já não é mais pensamento. Então, na literatura é a mesma coisa. Uma literatura, quando ela é repetitiva... ela está indo no bolo, bolo daquilo que se pode jogar num grande baú de “é tudo literatura”. Mas, na verdade, não. A literatura tem que ter uma palavra singular, uma forma singular de ver o mundo. 

                                                                                           Lourival Holanda,
                                                                                           Revista Crispim

                                                   

Coisas da vida



Muitas vezes me pego, inclusive aqui nesta crônica preguiçosa, pensando nas coisas da vida. De como ela – angústia de quem escreve e fim de quem entende –, do alto de sua dupla personalidade, se revela tanto no girassol que rasga a calota polar, quanto nas penas do urubu, em cuja sombra aguarda o náufrago moribundo. E que guarda, no imprevisível, sua graça. Sei que na lista de pulhas, que essa ardilosa concubina universal me reserva todos os dias, um dos itens que mais me faz estrebuchar de agonia diz respeito aos chamados semi-conhecidos.
Pior do que tia-avó surda em bingo de natal. Mais chato que torcedor que assiste ao jogo, no bar, sem desligar o radinho. O semi-conhecido é aquela pessoa que você sabe quem é (independentemente de identificar pelo nome), sabe que ele também reconhece você; mas que nunca – nunca! – dividiram um aperreio ou trocaram meia ideia sequer. Nem anônimo, nem colega. Ele pode ser o amigo de um amigo ou a manicure que batia na sua casa para empurrar as novidades da Avon para sua mãe. Em geral, são as figurinhas que entopem as sugestões do Facebook e do Twitter: “Talvez você conheça”. Conheço, e faço questão de não adicionar.
O problema é que ainda não foi descoberta uma forma socialmente adequada para lidar com eles. Imagine que você está em um ônibus quase cheio – exceto pela cadeira justamente do seu lado – quando, na parada, sobe uma única criatura. Logo quem? Aquele bicho que o adicionou no MSN, só para pegar umas dicas sobre sua irmã e, desde que levou um fora dela (há uns três anos, talvez), fica boiando na inércia da lista de contatos.
De cara, o inconveniente: você já viu que ele entrou, ele também já viu você. Os dois fingem que não, claro. Você cola, imediatamente, o nariz na janela e espera, com o ouvido tinindo, até o momento de ele se aproximar (intervalo extremamente aflitivo, diga-se). Quando a pisada fica mais forte, você dá uma viradinha e segura um micro-segundo. O mundo para por um instante. A partir daí, tudo se dá muito rápido. Pode acontecer de o bonitão simular que só te avistou agora e esboçar um contato: acena com a cabeça ou solta um grunhido educado – para viking nenhum botar defeito – no lugar do “e aí, meu irmão?!”. Ou ambos. Se você tiver mais sorte, o caba nem fala, passa direto, e todos vivem felizes para sempre.
Agora, a hipótese mais hedionda se materializa justamente quando bate olho no olho: o cidadão abre um sorriso do tamanho do Império Romano (e tão verdadeiro quanto o loiro de Preta Gil) e senta bem do seu lado. Não tem mais jeito. Primeiro, não dá mais para fingir que não sabe quem é; segundo, está estabelecida a obrigação da conversa; terceiro, tirando sua irmã, você não sabe que porra de assunto interessa ao cara. Nem o mais eficaz anjo da guarda pode tirar você dessa. Depois que passam as perguntas fáceis (tudo bom? tá indo pra onde? qual é teu curso?), um silêncio mais constrangedor que dedo de proctologista vai ganhando corpo. Olhar para o chão nunca foi tão interessante. Nem sua parada, tão distante.
Mas pior mesmo do que semi-conhecido, somente dor de barriga longe de casa. O sofrimento gerado pela sensação de ter um gato enlouquecido arranhando por dentro, junto ao fato de você ser completamente incapaz de expulsá-lo, ao menos que esteja sentado no trono do seu próprio lar. O suor começa a empapar o pescoço, a palidez vai se estampando no rosto. E sempre chega um camarada prestativo para, de pronto, perguntar se está tudo bem. “Claro que sim”, responde-se, invariavelmente, com a cara de quem foi obrigado a mastigar uma catita.
É nessas horas que desejo ser a rainha da Inglaterra ou até mesmo a filha de uma dupla de cantores sertanejos (falo “dupla”, porque nunca sei qual é o pai). Já que, ao que parece, elas nunca tiveram que passar pela via crucis que é precisar se aliviar e não poder (ainda que uma delas curta certas atividades na região em questão, o “sentido da coisa”, por assim dizer, é inverso). Quando, enfim, o lance aperta – o estômago se retorce, vem a rajada de desespero – você precisa, a qualquer custo, segurar a onda lá embaixo. Até o ponto de achar que não vai conseguir. Aí, ninguém mais consegue disfarçar a angústia.
Na primeira oportunidade, reúno meus calafrios, saio correndo e entro no primeiro busão que passar. Direto pra casa. O horário nunca é bom, e ele está quase lotado. Por sorte, há ainda um único lugar disponível. Acerto o passo com perícia, para não me desfazer ali mesmo, e vou sentar. Bem do lado da menina para quem mandei a primeira cartinha de amor, na alfabetização...

Aula de edição

Foi-me solicitado um texto para o jornalzinho do colégio em que fiz meu ensino médio (e pelo qual nutro afeição verdadeira). Era para ser algo como "ex-alunos e onde estão".

Não foi definido o tamanho (uma lauda, mais ou menos). Fiz, então, uma página e sete linhas. Grande, sim; mas esperava que, sendo eu estudante de jornalismo,  o mínimo que fariam é, se preciso, me pedir para editar e reenviar o texto com o tamanho especificamente adequado. Na verdade, o que fizeram foi, sem me perguntar nada, pinçar parágrafos para criar um "texto-frankstein".

Claro que a edição altera o sentido. Só que o jornal saiu  com minha assinatura. Tiragem de 3000 exemplares. Por isso, achei legal publicar, aqui, as duas versões: a origem e a que foi atribuída a mim.

Assim como eu fiz, divirtam-se.


Original

Algum tempo hesitei se devia abrir esta breve exposição pelo princípio ou pelo fim. Isto é, se poria em primeiro lugar os meus anos de aluno NAP, dos quais as lembranças respiram sem esforço; ou a minha atual condição, a uma volta no Sol de me graduar jornalista pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE).  

Suposto o uso canonizado seja começar pelo cabo, duas considerações me levaram a desejar um método diferente. A primeira é que não sou Machado de Assis, cujo brilhantismo me faz mastigar a inveja na língua; e a segunda eu não consegui pensar direito. Depois de esfolar uns tantos neurônios, decidi falar sobre algo de que não havia me dado conta até aqui: a relevância do JorNAP no meu direcionamento profissional. De certa forma, serve para sintetizar o encontro dos dois momentos (o princípio e o fim) lá de cima. 

Quando era eu quem ocupava a espaçosa cadeira verde-hospital do colégio, nos anos de 2006 a 2008, aguardava ansioso por cada edição semestral que ajudava a produzir. Ficava com as orelhas em brasa quando via um texto, com minha assinatura, modificado pela droga-da-editora-profissional-assassina-de-matérias-que-a-escola-insistia-em-contratar. Meio Narciso mesmo (mal de 12 a cada 10 jornalistas, ainda que mirim). O fato é que essa foi a primeira oportunidade que tive para trabalhar (e teimar, e limar, e sofrer, e suar) com informação, sabendo que – valei-me, meu São Francisco (de Sales, e não de Assis) – alguém ia me ler. 

Tomei gosto pela coisa. Apaixonei-me pela possibilidade de narrar as mais diferentes histórias (paixão que não passou – e o coração continua); sem que fosse necessário fazer uso da imaginação. Não que não seja.  Mas jornalismo é, essencialmente, trabalho de prospecção, de tato; de saber resgatar da lama da ignorância a pepita mais reluzente da notícia. Para isso, é preciso se despir de qualquer preconceito e estar sempre disposto a manter as discussões abertas, sem cerrar questões ou definir estatutos. 

Prestei vestibular em 2008, quando o curso era o terceiro mais concorrido; e o diploma, obrigatório. Passei. Estudo no Centro de Artes e Comunicação (CAC), que, de forma geral e grosseira, é o espaço de convergência das figuras mais irreverentes e bizarras da cidade. A título de ilustração, a primeira pessoa que lá avistei foi um senhor de 60 anos cuja cabeça fazia vez de alicerce para um moicano punk, pintado de rosa choque. Encantei-me pela Universidade. 

Mas nem tudo é poesia. Em termos de gestão de curso, a UFPE ainda tem muito a aprender. Muitas cadeiras são repetitivas; e uns tantos professores, intelectualmente preguiçosos. Não me constrange afirmar que aprendi mais debatendo pelos corredores do que silenciando na sala de aula. Paralelamente, o mercado de trabalho é um ponto que sempre suscita dúvida em quem pondera se aventurar na profissão. Quanto a isso não há mistério: saiba que o ofício não é dos mais bem pagos, e é preciso mergulhar de frente (estabelecer boas relações e demonstrar perícia) para se consolidar na área. Faz-se importante dizer, no entanto, que, enquanto estudante, estágio não falta. 

Ingressei na UFPE para me preparar. Também, durante esses três anos, ministrei aulas no projeto NAPcomunidade (que recomendo a todos, o lucro profissional e humano é impressionante). Tive meus louros e minhas frustrações, mas continuo sem me sentir pronto. No dia em que começar a achar que sou um jornalista feito, saberei que passou da hora de parar.  

Sei que a interrogação é a maior das minhas armas. Através dela, desbravam-se campos inóspitos das verdades absolutas e se rompem os grilhões do atraso. A grande sacada reside em saber que a certeza nunca fez o mundo andar. Ser jornalista é respeitar o diferente, respeitar o outro. Por isso, é a arte do encontro entre pessoas, suas histórias, e o mundo. Diferente do defunto-autor, que mais nada pode fazer sobre a terra, o fazer jornalismo é postura de reflexão; e a reflexão provoca mudanças. 

Muita gente diz que foi inevitavelmente arremessado no obscuro mundo da imprensa, já que não saberia lidar com qualquer outra coisa. Comigo não. Eu escolhi, porque quis; mas entendo quem não topa comprar o risco. Não me arrependo dois dedos.

Publicado 

Algum tempo hesitei se devia abrir esta breve exposição pelo princípio ou pelo fim. Isto é, se poria em primeiro lugar os meus anos de aluno NAP, dos quais as lembranças respiram sem esforço; ou a minha atual condição, a uma volta no Sol de me graduar jornalista pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE).

Prestei vestibular em 2008, quando o curso era o terceiro mais concorrido; e o diploma, obrigatório. Passei. Estudo no Centro de Artes e Comunicação (CAC), que, de forma geral e grosseira, é o espaço de convergência das figuras mais irreverentes e bizarras da cidade. A título de ilustração, a primeira pessoa que lá avistei foi um senhor de 60 anos cuja cabeça fazia vez de alicerce para um moicano punk, pintado de rosa choque. Encantei-me pela Universidade.

Muita gente diz que foi inevitavelmente arremessado no obscuro mundo da imprensa, já que não saberia lidar com qualquer outra coisa. Comigo não. Eu escolhi, porque quis; mas entendo quem não topa comprar o risco. Não me arrependo dois dedos.

*A edição e publicação do jornal são terceirizadas 
 

Heroína

Sabe,

se eu pudesse, mandava na veia uns sete litros de Bukowski, Camus e Vinícius. Mas só depois mesmo de entupir tudo o que for de artéria.

Pra não ter chance de escapar ao coração.