2016 e suas mulheres

Era uma manhã de agosto e o meu telefone na redação começou a tocar.

- Estado...
- Alô, eu queria falar com o Felipe, por favor.
- Sim, é ele. Quem fala?
- Aqui é a Rosa.

Dona Rosa, eu sabia, era a mãe de Wilker Osório, um rapaz, 29 anos, ajudante de pedreiro, morador de Barueri. Não esperava que ela me ligasse. Um dia antes, eu havia ido até a casa deles, mas, como não encontrei ninguém, deixei na caixa de correio o meu cartão e um bilhete. "Estou fazendo uma reportagem e gostaria que a senhora pudesse falar comigo".

Wilker era uma das 23 vítimas da maior chacina da história de São Paulo. Foi assassinado com quarenta tiros. Sempre que eu me lembro que foram quarenta tiros, faço a contagem na cabeça: um, dois, três, quatro, cinco, reticências, reticências. Acho que dá um pouco a dimensão.

Quarenta tiros contra um Wilker que voltava a pé do trabalho, trazendo uma mochila nas costas e, dentro dela, a marmita, os talheres, hortelã e capim-santo. As folhas foram colhidas para uma Dona Rosa que estava resfriada. É claro que ela nunca bebeu o chá. Foram um, dois, três, quatro, cinco, reticências, reticências, contra um Wilker que voltava a pé do trabalho, trazendo uma mochila nas costas. Voltava a pé do trabalho. Quarenta tiros é reticência demais.

Antes da conversa, Dona Rosa me perguntou se eu sabia de duas viaturas que ficaram passando pela frente da casa no mesmo dia em que eu fui lá. Respondi, sinceramente, que não. Ela, sem motivo para acreditar, não sabia quem eu era, nunca viu meu rosto, acreditou. Na minha vez, pedi desculpa pelo assunto, imaginava que doesse. Ela me disse que doía, sim, mas que alguém precisava falar.

Me senti idiota perguntando "quem era Wilker", "que tipo de lembrança a senhora guarda dele", "como a senhora recebeu a notícia naquele 13 de agosto", "o que mudou um ano depois, Dona Rosa". Sempre me sinto idiota fazendo pergunta a uma mãe que perdeu o filho. Pergunto sobre algo que eu sei que não posso dimensionar, que não está ao meu alcance. No máximo, talvez eu consiga captar alguns elementos, algumas nuances, e colocá-los em perspectiva. Colocá-los em palavras que vão preencher três, quatro parágrafos na esperança, sem garantia nenhuma, de que também deixem umas reticências por aí.

Toda vez que eu pedia desculpa e que Dona Rosa me respondia "tudo bem, meu filho, alguém precisa falar", eu ficava mais impactado. Dona Rosa falou que, desde a morte do filho, não conseguia mais pagar o aluguel de R$ 740 (um cálculo rápido, quarenta balas de .40, em 2015, chegavam a custar algo como R$ 340). Falou que passou a morar com uma irmã que estava com câncer e que escondeu as fotos do filho para que o assunto não tomasse conta da casa. Disse que estava cansada, mas que não deixava transparecer. Achava que tinha que ser forte pelos outros. Quando chorava, chorava escondida.

Desliguei o telefone e não escondi o choro. Sentada pertinho de mim, a Gi, que é uma das amigas a quem eu peço opinião sobre textos antes de publicá-los, me abraçou e, generosa que é, emprestou os ouvidos. Eu disse que não dava mais conta, não tinha sobrado víscera para isso, não. Era a terceira matéria grande em menos de seis meses que eu precisava conversar com familiares de pessoas assassinadas (antes, tinha publicado o especial de "Mortes Suspeitas" e "Dez anos dos ataques do PCC").

Este texto não é sobre tristeza, é sobre aprendizado. Desci para fumar um cigarro e pensei na minha mãe, no meu pai, minhas irmãs, minha vó. Pensei em Mayra, esse presente que a vida me deu. Nos meus amigos que, não importa a circunstância nem a geografia, estão sempre por perto. E no tempo que eu perco reclamando da camisa que rasgou, da passagem que está cara, do plano que não deu certo - com a vida aí, velho, com esse tanto de gente para a gente amar.

Escolhi falar de Dona Rosa no último dia do ano porque ela foi uma das várias mulheres dispostas a dividir a força com que vivem a vida. Pessoalmente, tive o privilégio de conhecer Alieti, avó de Tainá. Vera Lúcia, mãe de Ana Paula. Maria Sônia, mãe de Wagner. Edinalva, mãe de Marcos. Débora, mãe de Rogério. Carla, mãe de Nivea - essa última uma bebezinha de dois meses que encontrei no Hospital Oswaldo Cruz, referência no tratamento de microcefalia em Pernambuco. Meu agradecimento a todas elas por permitirem que eu me tornasse uma pessoa um pouquinho melhor.

Falem o que for, 2016, para mim, foi um ano foda. Até teve suas perdas, algumas delas bem pesadas, mas nada que me forçou a sair escondendo retratos. Passei a maior parte do ano rodeado de pessoas queridas em casa, na redação e na rua. Troquei ideia com referências do Jornalismo, com estudantes, com colegas, com amigos. Conheci um monte de gente disposta a compreender o outro, a não se levar tão a sério assim e a tomar cerveja de buenas numa quarta à noite.

Consegui viajar, consegui ver minha família mais de uma vez e consegui passar o carnaval no Recife (coisa que não acontecia há seculos). 2016 também me permitiu redescobrir pessoas incríveis e me devolveu a capacidade de amar sem reticências. Há uns bons anos eu não me sentia tão vivo e tão inteiro, e nem dava início aos próximos 365 dias com tantos projetos na agulha. Então, maninho, eu só tenho a agradecer.

Muito, muito obrigado.

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