em qualquer esquina

o fruto de angico secou
não sei se por insistência do sol sobre os galhos
ou se por demais repisado quando no chão.
mas da concha longilínea sobrou uma massa dura e marrom,
inteiramente esfolada
mantendo, vá lá, duas ou três sementes entre os fiapos da casca,
apesar de tudo, ainda rica em taninos.
o que nada quer dizer.

os frutos de angico são deiscentes,
e, se isso também pouco lhe diz,
imagine um relógio incrustado no tronco da árvore
que, na real, não existe
nele, há uma hora xis para que a concha
se abra em fenda, num momento de flor resignada,
deixando livre meia dúzia de sementes.
nem todos os frutos de angico são pontuais.

as sementes de angico também são marrons,
mas arredondadas e glabras, o que,
subtraindo o exibicionismo linguístico dos botânicos,
quer dizer simplesmente sem pelos.
nelas, há apenas dois-vírgula-poucos-porcento de bufotenina,
um alcaloide que atua diretamente no córtex cerebral
e, veja só, deriva da serotonina.
dizem que os yanomami a aproveitam na fabricação de alucinógenos.
nunca vi um yanomami passeando em são paulo.

na rua onde o fruto de angico caiu, há árvores a cada sete metros
e à noite desenham sombras duras com o amarelo dos postes
ficam as sombras e a tonalidade amarelada,
dos cartazes que o tempo descolore, lembra?
talvez semelhante à da espada de iansã, quando espeta o sol
ou a de uma infecção hepática.
todos os postes funcionam perfeitamente.
os moradores reclamam da iluminação precária
e do risco permanente de assalto.
os que dormem sob as folhas de angico são os que mais reclamam.

num instante qualquer, sopra uma brisa forte rua acima,
que vai marcando curiosas espirais, girando, girando, girando
a gente vê o vento por causa da poeira
e a gente vê o tempo por causa da poeira
girando, girando
parece, sei lá, uma cena fajuta, meio filme sessão da tarde
mas a trilha sonora era boa
o farfalhar dos farelos de lixo e dos restos de folhas pisadas
contra o silêncio da rua.
girando.
ao fundo, o cheiro de bosta de gente gotejada na calçada.

um bêbado agora tenta subir a rua aos tropeços,
sete metros separam uma árvore da outra.
até que se apoia no angico para coçar a virilha.
usa uma calça rota, camisa amarela e sandálias havaianas só a tala.
leva um cigarro na boca que parece já ter apagado há duas semanas.
ao se dar conta, descarta a bituca rente ao meio-fio,
depois, no vazio, arrisca uma cusparada.
e o vento não leva.

só quando foi entrar em casa, umas trinta cervejas dali,
percebeu a sandália suja de merda
na merda ainda pendia uma semente seca, como uma pérola presa.
afirmativa falsa, contudo
porque angico é daquelas árvores que dão em qualquer esquina.

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