A ignorância afirma ou nega veementemente


Petrarca inventou o amor. Quer dizer, foi, antes dele, a literatura que o criou. Escorre das canetas; de toda pena que pinga, em retrocesso histórico, o líquido amniótico da poesia do século catorze, e das pequenas canções italianas, e dos trovadores provençais. E de Petrarca. A invenção do amor é literária. A efusão crua de sentimentos não é mais que máscara do cio.



O amor é uma bobagem. Cera; a sinceridade é o sexo. Teatro catarse, palavra ametista. Coisas bonitas (embora, desde Kant, a concepção estética é expressão maior do subjetivo). O amor, em seu âmago, é literalmente literatura.



Petrarca é, por assim dizer, a epifania do cinismo. A necessidade atemporal de justificativas éticas para a natureza. Como se o natural precisasse de um antropoatestado para ser legítimo. Melhor: o amor, talvez, seja anacrônico. Talvez, desde Kafka – e sua metamorfose de cabeça para baixo – sua ode ao retrocesso – o regresso ao in natura – o amor seja anacrônico. Ou antes dele, não sei.



Parece, no entanto, que – a cada declaração debutante ou derradeira – pishtacos embolam a gargalhadas. Pouco dizem, muito pungem encenações malfeitas. Teratológicas.





Boas praças reservam a si a vez de conselheiro aos casais: “Se curtam”.

Mas mal conseguem ouvir que o que ressoa, na verdade, é: “Cicuta”.





Faz pensar que até aqui a associação inversa te faz pensar.
Nem tudo que faz crescer faz sorrir.

3 comentários:

  1. Quem acompanha o mínimo que seja Letras & Cimitarras sabe que não costumo comentar, no blog, nenhum dos meus textos.

    Em abril de 2011, fez dois anos que publico – sem periodicidade ou maiores compromissos – ligeiras idéias neste espaço. Muitos mais do que ambiente de posicionamentos cerrados, espero que o Centro suscite provocações que, se possível, auxiliem na construção da pluralidade e independência de pensamento.

    Acontece que, há um mês, mais ou menos, postei o que seriam, em relação à estrutura argumentativa e à intenção, minhas mais ousadas linhas

    Dei-lhe por título uma afirmação de Voltaire (que também uso como citação no blog – e que poderia, sem grandes problemas, ser tomada como síntese representativa dos valores, aqui, defendidos ), “a ignorância afirma ou nega veementemente”.

    Nela, repousaria a dica maior para essa minha referida intenção textual. Não é a única pista, entretanto. As duas frases de encerramento (em especial, a segunda) também apontam para o mesmo sentido.

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  2. Há pouco tempo, tive a oportunidade de discutir este texto com duas grandes figuras: meu amigo (e companheiro de jornalismo,) Mano, e o professor (e intelectual) de letras, Peron

    Essa conversa me fez repensar alguns pontos expostos, e abrir meus olhos para algumas confusões que, acomodado pela sensação de clareza que acomete os autores, não percebi.

    O primeiro diz respeito construção mal feita do primeiro parágrafo. Originalmente assim:

    “Petrarca inventou o amor. Quer dizer, foi a literatura que o criou. Escorre das canetas; de toda pena que pinga o líquido amniótico da poesia do século catorze, das pequenas canções italianas, dos trovadores. De Petrarca (...).”

    Ora, desde o início, intenciono dizer que o amor é criação da literatura, e que, entre os escritores, Petrarca é uma figura fundamental à consolidação da visão do conceito de amor socialmente aceito como o sentimento do “homem de bom coração”. Só que Petrarca, como se sabe, não é o primeiro a falar disso. Na verdade, ele faz, em seus sonetos de 1300 e pouco, uma ressignificação da obra de trovadores provençais (franceses) bem anteriores. Lá do século XI e XII.

    Quando eu digo: “da poesia do século catorze, das pequenas canções italianas, dos trovadores”, queria indicar (retrocedendo) essa passagem histórica (dos trovadores até Petrarca), mas a intenção foi afetada pela péssima construção literária. Do jeito que estava, dava a entender que Petrarca inventou sozinho o amor, aproveitando a poesia de trovadores italianos do século catorze. Ou seja, só tudo errado.

    Falo também, no texto, de Kant e de Kafka. Preferi não realizar quaisquer alterações nas passagens, porque o conflito gira em torno da interpretação (o que não repete o problema estrutural do primeiro parágrafo). Sem contar que assim, do jeito que está, reafirmo minha linha retórica para o texto (sobre a qual tanto falei, mas intencionalmente não disse; porque é importante descobrir sozinho, ou simplesmente não descobrir).

    Mas queria sim acrescentar os comentários de Perón. Riqueza é sempre bem-vinda; munição interpretativa, também:

    Peron diz:
    Kant tem uma peculiaridade importante. Sem dúvida que ele põe a subjetividade como marca do juízo estético, mas tenta fazer uma abstração, extrair uma razão pura inclusive da razão estética. Quando faz a oposição entre belo (que seria o alcance do objetivo) e o agradável (reino puramente do subjetivo, que está no campo das percepções e das experiências) o estético, para Kant, não seria propriamente o ápice do subjetivo, já que também o estético deva ser posto num crivo crítico para o qual a despersonalização é um imperativo categórico, uma postura intelectualmente moral. No fim das contas, ele diz que o juízo é subjetivo, mas objetivado. Como assim? A minha impressão é subjetiva e é a partir dela que vou tentar DEMONSTRAR uma sustentação, imputar no objeto que me foi agradável uma universalização, uma objetividade. Isso obriga o apreciador da arte a racionalizar a sensação e desenvolver, assim, uma sensibilidade inteligente. Afinal, nada pior do que: ‘Gostei dessa música.’ ‘Por que?’ ‘Ah! Porque é legal’.

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  3. Peron diz:
    Kafka, me parece, não faz o caminho inverso HOMEM – NATURA, para ele, o homem É natura. Tudo é uma questão de circunstâncias. Não é um retorno, é apenas o desvelamento do que sempre foi. No conto O Artista da Fome, isso fica bem claro. Porque neste conto o ser humano é realmente bestializado, dada a circunstância da fome.

    Felipe Resk diz:
    Mas a 'bestialização' não faz parte de um processo de escolha do artista da fome?

    Peron diz:
    Sim, mas a própria escolha já não é muito racional, pelo menos nos termos em que a racionalidade foi pensada pelos iluministas

    Felipe Resk diz:
    ?

    Peron diz:
    Além disso, o homem que aprecia a besta e faz disso um espetáculo (como ocorre na narrativa) não está no padrão de racionalidade também dos iluministas.
    Como assim?! Porque para os iluministas, o homem é razão menos o corpo. O ato de pensar já é condição necessária e suficiente para sua existência; o corpo é um empecilho à razão pura. Mas toda a animalização do homem vem à tona quando ele se deleita com a SENSAÇÃO de espetáculo da miséria alheia.

    Felipe Resk diz:
    Não entendo como o corpo é obstáculo à razão.

    Peron diz:
    Porque o corpo nubla, pela sensação, pela falibilidade dos sentidos, uma suposta pureza a que a razão pode chegar.

    Peron diz:
    Quando o homem se transforma num inseto, é o inseto que há nele que vem à tona. Tanto é verdade que os outros, SEM SE TRANSFORMAREM EM ANIMAIS, agem de modo brutal; afastam-se; têm repugnância, o nojo do olhar nubla a ideia racional de que é um parente que está ali.

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