Silvana fechou a porta angustiada: pela primeira vez em quase duas semanas de academia, a preguiça não deixou terminar sua série. Sem provocar barulho, fora o canto metálico da tranca, penetrou pela porta da cozinha, e, longe de realmente pensar no que ia fazer naquele momento, catou seu copo de vidro no armário, para gozar de mais alguns goles d’água.
Depois, passou até a sala de estar, onde a televisão de plasma recém-adquirida era reverenciada pela atenção de um garoto de nove anos, seu único filho. Ainda sem falar absolutamente nada, acomodou-se em uma poltrona elegantíssima, os tênis estavam quase conseguindo matá-la. Quando desprendia a meia empapada de suor, foi surpreendida pela criança:
- Mamãe, você não sabe o que aconteceu: nem teve aula hoje.
- Como assim?! Em plena sexta-feira?! Mas hoje nem é feriado!
- O professor da quinta série lá da escola morreu. Ontem, assaltaram uma padaria, ele tava lá. Só que ele levou dois tiros. Morreu na hora, parece.
- Que coisa mais triste...
De fato, era triste. Tão triste, que a dimensão não podia ser entendida por palavras manjadas e vazias. Tão séria, que não rimava com a automaticidade do discurso, tão voluntário quanto uma retribuição de aceno ou um “boa noite” no elevador. Não que Silvana não se chateasse com esse tipo de acontecimento, não. Certamente, ficava abalada - mais por se sentir oprimida, que pela vida do professor, é verdade; afinal, para ela, ele muito pouco representava: nem o nome sabia.
Era somente mais um retrato da insanidade urbana e da fragilidade da vida alheia. Sem dúvida, ela ficou triste, mas não se revoltou. Não foi às ruas. Não bradou por justiça e por segurança. Nem sequer vai ao velório, muito menos oferecerá condolências à família. Talvez, lembrasse de rezar, antes de dormir, mas definitivamente, aquele caso não a emocionara, não a fizera chorar. Chegou nem perto. O que era aceitável: enquanto vivo, ninguém lamentou suas desilusões ou aplaudiu seus feitos; ninguém publicou suas cartas ou leu seus poemas; e, sobretudo, ninguém imitava o jeito dele se vestir ou a maneira de comer macarrão. As lembranças que aquele professor deixou jaziam em palavras frias para acontecimentos banais.
Dois tiros, apenas, foram suficientes para transformá-lo em estatística, mas não fortes o bastante para comprar quatro minutos em uma emissora qualquer. Nas últimas três décadas, a paz brasileira abençoou mais de um milhão de cidadãos, como aquele professor: metade do número de mortos na Angola, em quase quarenta anos de uma avassaladora guerra civil. Hoje, todos eles nada são, além de algarismos e da ausência de lágrimas.
Depois, passou até a sala de estar, onde a televisão de plasma recém-adquirida era reverenciada pela atenção de um garoto de nove anos, seu único filho. Ainda sem falar absolutamente nada, acomodou-se em uma poltrona elegantíssima, os tênis estavam quase conseguindo matá-la. Quando desprendia a meia empapada de suor, foi surpreendida pela criança:
- Mamãe, você não sabe o que aconteceu: nem teve aula hoje.
- Como assim?! Em plena sexta-feira?! Mas hoje nem é feriado!
- O professor da quinta série lá da escola morreu. Ontem, assaltaram uma padaria, ele tava lá. Só que ele levou dois tiros. Morreu na hora, parece.
- Que coisa mais triste...
De fato, era triste. Tão triste, que a dimensão não podia ser entendida por palavras manjadas e vazias. Tão séria, que não rimava com a automaticidade do discurso, tão voluntário quanto uma retribuição de aceno ou um “boa noite” no elevador. Não que Silvana não se chateasse com esse tipo de acontecimento, não. Certamente, ficava abalada - mais por se sentir oprimida, que pela vida do professor, é verdade; afinal, para ela, ele muito pouco representava: nem o nome sabia.
Era somente mais um retrato da insanidade urbana e da fragilidade da vida alheia. Sem dúvida, ela ficou triste, mas não se revoltou. Não foi às ruas. Não bradou por justiça e por segurança. Nem sequer vai ao velório, muito menos oferecerá condolências à família. Talvez, lembrasse de rezar, antes de dormir, mas definitivamente, aquele caso não a emocionara, não a fizera chorar. Chegou nem perto. O que era aceitável: enquanto vivo, ninguém lamentou suas desilusões ou aplaudiu seus feitos; ninguém publicou suas cartas ou leu seus poemas; e, sobretudo, ninguém imitava o jeito dele se vestir ou a maneira de comer macarrão. As lembranças que aquele professor deixou jaziam em palavras frias para acontecimentos banais.
Dois tiros, apenas, foram suficientes para transformá-lo em estatística, mas não fortes o bastante para comprar quatro minutos em uma emissora qualquer. Nas últimas três décadas, a paz brasileira abençoou mais de um milhão de cidadãos, como aquele professor: metade do número de mortos na Angola, em quase quarenta anos de uma avassaladora guerra civil. Hoje, todos eles nada são, além de algarismos e da ausência de lágrimas.
Gostei :)
ResponderExcluirPensei que a morte de Michael Jackson seria um fenômeno midiático bem legal de se observar, mas as reações foram tão previsíveis.
Sobre o conto, até ri quando li o título =P
excelente :)
ResponderExcluirEsse é o segundo texto que eu leio hoje com uma abordagem parecida da morte do Michael Jackson. O outro falava também da morte de crianças no ônibus do Rio e na quantidade de pessoas que está em luto por isso no msn, no orkut e afins. É banalização de tudo quanto é jeito.
ResponderExcluirPelo menos o garoto não vibrou por estar sem aula. Nem tudo está perdido (?)
Michael morreu, seus merdas insensíveis!
ResponderExcluirAU!!
Abraços,
Diogo.
faz o teu, resk!
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