O muro altivo de azulejo negro já foi cerca de arame, barro queimado, chão de terra batida. Hoje, não se afunda mais os pés na lama em dias de chuva, mas o mucambo ainda sobrevive nos hábitos. Há 76 anos, Zeca mora na Rua 12 de Outubro, no nobre bairro dos Aflitos. Quando não está costurando, ela passa horas a fio na calçada, em constante indiscrição aos destinos da vida alheia. Fica sentada no banquinho de madeira, “vendo o povo encher a rua de perna”, como gosta de dizer. Afeita a conversas, é sempre solícita com quem lhe bate à porta. Toc toc toc. “Pode entrar, aqui só paga a saída.”
Por dentro, a casa é muito simples; no sofá de três lugares, o tecido do forro, em estampas floridas, é o mesmo da cortina que divide a sala apertada dos demais aposentos. O teto é baixo; o telhado, aparente. Em cima da cômoda, a imagem de Santa Rita de Cássia – ganhou de aniversário em março – vela suas causas impossíveis. “Agorinha, Verônica me deu um dinheiro que estava perdido faz uma semana. Eu já peguei nele hoje cedo, e não sei onde botei”, conta, com uma dicção marcada por ênfases precisas, enquanto revira, em vão, um monte de papéis espalhados. Desde que sofreu um princípio de acidente vascular cerebral, há quase dois anos, é a filha quem vai receber a aposentadoria no seu lugar.
Quando, enfim, desiste da busca, se derrama feito criança na cadeira de plástico – a postura torta, a perna apoiada num canto mais alto. Fica contente em falar de si mesma, de ter sido uma das poucas na rua que aprendeu a confeccionar calça comprida ou de como preparou à mão o enxoval das três meninas em opala e cambraia zebrinha. “Até os casaquinhos de flanela para dormir, tudo com o viesinho, eu procurava caprichar”, diz. Apenas algumas vezes, mantém a frase suspensa: recavando palavra perdida nas gavetas da memória. Datas e nomes, em especial os mais recentes, lhe escapam com certa frequência. E isso a tem preocupado bastante.
Naquela casa, as paredes ainda estão rabiscadas por travessura de miúdos. Mas ali não há mais crianças: o neto mais novo completa quinze mês que vem. Tudo parece, quase confessadamente, remeter ao passado. E nada com tanto impacto quanto a máquina de costura reta, que fica bem no meio da sala, ocupando, se duvidar, um terço do espaço. Uma Singer autêntica, com suporte de metal rendado - um tanto desgastado, é verdade - mas ainda assim conservando certo ar de requinte. Para funcionar a agulha, nada de eletricidade: o dorso do pé precisa compassar harmonicamente o pedal de ferro fundido. Subindo e descendo, subindo e descendo. “Quando veio para a minha mão ela estava com uns cinquenta anos, do jeito que chegou deixei”, conta, apontando os cordões remendados que reforçam a correia já velhinha. “Madrinha quem mandou do Rio de Janeiro, trabalhava em casa de família inglesa”, completa. Nunca - nunca, ouvi bem?! - permitiu que alguém tocasse nela.
Por trás dos grossos óculos de
grau, os olhos orgulhosos admitem: “Costurar foi o único serviço que eu fiz na
minha vida toda”. Ela interrompeu o colégio na quarta série; os estudos não
atendiam às necessidades imediatas da família, pobre. Aos treze, viu no jornal
o anúncio de uma venda na Rua das Pernambucanas, perto dali: contratavam-se
dedos ágeis para chulear, fazer caseamento, abanhado, pregar botão, gola ou
punho. “Eu não sabia nada, terminei aprendendo lá mesmo”, revela. Das primeiras
tarefas de acabamento para a incursão em corte e costura foi um pulo, antes dos
vinte já trabalhava por conta própria.
Naquele tempo, a 12 de Outubro era repleta de costureiras. Em poucos segundos, Zeca é capaz de nomear um punhado de exemplos. Margarida, Dona Maria, Dona Aurora, Maria do Monte, Dona Inesinha. Todas vizinhas. Nos dias atuais, resta apenas uma. “O pessoal agora compra muito roupa aprontada”, justifica, elucidando também o motivo pelo qual vê sua atividade praticamente reduzida a pequenos consertos.
De acordo com o jornalista Phelipe Rodrigues, que é especialista em moda, os tempos áureos da costura já findaram há anos. “Até a década de
1960, as lojas de tecido, chamadas fazendas, eram comuns na cidade do Recife.
Hoje, há o fast fashion, mais prático
e mais rápido; empreendido pelas empresas de moda que oferecem o prêt-à-porter”, no bom português, pronto para vestir. “O papel da
costureira se tornou quase exótico, é um momento de exceção, em que se recorre
quando há uma festa de quinze anos, um casamento. É como beber champanhe: se
muito, uma vez ou outra.”
De fato, cada vestido de organdi
demandava tirar as medidas do ombro, busto, cintura, quadril; fazer o molde,
cortar, montar, para só então poder ser posto à prova. “Já manheci muito dia na máquina de costura”, recorda Zeca, que sempre
preferiu as noites para percorrer tecidos em linha. Hoje, só recebe mesmo quem
a conhece de outrora: nem a plaquinha em que se permitia ler costura-se fica mais pendurada no muro
altivo de azulejo negro, que já foi cerca de arame, barro queimado, chão de
terra. Três batidas na porta. Toc toc toc. “Pode entrar”. – Quanto ficou, Dona Zeca? A moça
bem vestida (“mora no prédio da outra rua”) recolheu a sacola plástica, calção
e saia bem dobrados, e, sem troco para vinte, saiu sem pagar.
***
Há dois anos, Zeca – que na verdade se chama Maria José Tibúrcio Duarte – enfrenta intermitentes internações em hospitais, em virtude da pressão alta e de ataques isquêmicos. “Estou me sentindo muito deprimida, porque não tenho mais cabeça para fazer o que fazia antes”, manifesta a costureira que perdeu o controle sobre quantos remédios precisa tomar. Desde então, a morte aparece obscenamente no seu discurso. Ao mencionar as pessoas que um dia conheceu (são muitas), mas que já faleceram, acrescenta sempre o prefixo finado (“que Deus o ponha em bom lugar”, logo depois). Se a memória falha, ela balança a cabeça, estala a língua, demonstra irritação consigo mesma. “Qualquer dia desses, você recebe a notícia que eu fui embora.”
A contar do nascimento, Zeca
passou a reunir ausências. De imediato, dos pais. Foi criada pela avó viúva, Dona
Joana Evangelista, e por Gina, a tia por parte de mãe que, a vida inteira
resguardada, definhou naquela casa, compartilhando do mesmo teto, “sem botar
uma vela, sem nada”. “No velório dela a funerária trouxe um véu roxo, eu mandei
trocar por um branco”, relata em decoro à castidade da tia. Como a família não
permitiu a realização da autópsia, a causa
mortis foi condenada à dúvida. “Ela nunca se casou, nunca namorou. Abrir o
corpo depois de morta seria desrespeito.”
Das recordações da mãe, Firmina
Duarte, com quem “nunca tive conversa, dizem até que costurava muito bem”,
guarda o dia em que ela tomou os rumos do Rio de Janeiro à bordo de um navio.
“Ela veio aqui em casa se despedir da gente. Eu era muito pequena, mas – veja
como são as coisas – me lembro bem do vestido que usou para viajar: todo cor de
rosa, de linho. Fui abraçar, assim, pela cintura; ela segurou meus braços, para
não amassar o vestido.” As lembranças do pai – na certidão de nascimento,
Severino Tibúrcio Duarte – são, contudo, ainda mais inquietantes. “Ele morreu e
nunca chegou a saber da minha existência”, conta, sem economizar no tom do
advérbio.
Nas vezes em que as irmãs mais
velhas, Célia e Zélia, eram levadas pela vizinha (a finada Dona Olímpia), para visitá-lo, Zeca era privada do passeio e tinha de permanecer sob os cuidados da
avó. “Sempre fui tratada de forma diferente, e não entendia por que”, diz. “Eu
me lembro, a casa era um mucambo mesmo, no canto tinha uma mesa, que ele vinha
tomar café de vez em quando com vó de
noite. Era só ele chegar que Gina me levava lá para o fundo, para ver o quintal. Tinha
manga, sapotizeiro, bananeira, pé de fruta-pão, tudo que eu sabia que tinha."
O motivo de tanto esforço para minimizar a margem de encontro entre pai e filha manteve-se em segredo por todos da casa. Sobre isso, Zeca só veio tomar tino durante uma das muitas conversas de rua, em que, sentada no banquinho de madeira, viu a indiscrição do próprio destino ser escancarada por um conhecido da família. Severino era caboclo; Firmina, negra. As duas irmãs mais velhas: tez escura, cabelo crespo. Zeca nasceu com a pele branca e o cabelo claro. “A coisa melhor do mundo que achei nessa entrevista foi que nunca tive oportunidade de falar isso com ninguém.” Julguei que era uma confissão sincera. Meio sem jeito, agradeci pelo encontro, disse que voltava para mostrar o texto; quando me respondeu. “Sabe, estou até pensando em colocar a plaquinha de novo.”