Pelo direito ao besteirol digital



Na sacada que faz um bom quadrinista, Bruno Maron arrematou: “Cézanne, o tataravô do Instagram”. Jocosamente, o designer carioca aludiu a natureza morta pós-impressionista do século 19 à atual mania irrefreável de fotografar comidas, alimentada por tantos usuários do aplicativo pertencente ao Facebook. No balão, o pensamento “as pessoas precisam (grifado mesmo) saber o que eu estou comendo agora”, traduz uma crítica sutil, por associação. E, ao que parece, o compartilhamento de informações estritamente pessoais, que vão de check-ins em paradas de ônibus a registros em velórios, tem incomodado muita, muita gente.

Em tempo, a internet já foi tratada como panaceia, já se tornou o espaço de todos os males, amém, – e, hoje, nessa demência de rotulação, a verdade é que ninguém é lúcido o suficiente para entender com exatidão a potencialidade que ela pode representar de fato. Fala-se muito em web três ponto zero, o reino da interatividade, em que todos são autores de notícia, et cetera e tal. Mas as repercussões disso tudo ainda estão sendo deglutidas. E no passo digestivo dos ruminantes. Essa espécie de perplexidade geral oferece terreno para um deslize comum: imputar supostos erros de conduta na plataforma, que é apenas uma ferramenta. Ilustrando, diz-se “a internet expõe muito as pessoas”. Não. Os usuários se expõem por meio da internet. O porquê de se expor são outros quinhentos, que pouco tem a ver com o instrumento propriamente dito. Vamos lá.

Comunicar só vem do latim o termo. A necessidade humana, em si, em muito precede o encontro das miríades gentílicas no Lácio. Ela nasce do esforço em resolver os conflitos de alcance entre os indivíduos e, evidentemente, data da origem deles. Antes de qualquer império, já havia o batucar dos tantãs, as pinturas rupestres. E, por trás disso, a procura por revelar, através de representações, estados de espírito, sensações, ideias, experiências... Num paralelo possível, é o óbvio ululante que a internet modificou o fluxo de informações veiculadas e as formas paleolíticas de interagir – mas não a natureza do ato.

A origem etimológica do termo comunicar nos oferece uma pista provocadora. Tornar comum. Numa observação mais cuidadosa, contudo, passei a entender comunicar como soerguer janelas de plural ventilação nos edifícios dos universos inevitavelmente particulares. Aprofundo em seguida.

Doutor pela Michigan State University, o professor Juan Bordenave defende que a comunicação “serve para que as pessoas se relacionem entre si, transformando-se mutuamente e a realidade que as rodeia”. Da afirmativa de Bordenave é possível inferir, portanto, que a ação comunicativa, se não deriva, ao menos está posta em correlação com determinada realidade vivenciada – que sofrerá tais mudanças. No entanto, desse vínculo inquebrantável sobrevém uma questão filosófica fundamental, a qual o professor não satisfaz: do que se trata a realidade?!

Há quase quatrocentos anos, o francês René Descartes, consciente da soberania da dúvida, danou-se a questionar a própria existência do homem. Das incursões, que o levariam à supracitada frase-monumento “penso, logo existo”, uma pergunta merece especial destaque. Qual a garantia em considerar a vida – que segue um perceptível enquadramento lógico (não voamos por dupla culpa da gravidade e da nossa anatomia, por exemplo) – algo real, se, durante o sono, as ocorrências oníricas fazem pleno sentido?! Não seria a vida, por extensão possível, uma variável do sonho?!

A Literatura incorporou essa inquietação através do non sense, recurso que se vale da exploração de cenas, a priori, absurdas, muito embora precisem fazer sentido em nome do conjunto narrativo. E chegou a um resultado conceitual interessante. Trata-se de uma obviedade (de novo), mas que nem sempre nos damos conta: em virtude até do aparato biológico, eu não percebo o mundo da mesma maneira que você, leitor, nem de qualquer outra pessoa. A grande sacada, em fim (e não enfim), se constrói por meio dessa estratégia de negar qualquer imposição da realidade, já que estranhar o absurdo (a percepção do outro) é esbarrar no “absurdo real” (a forma com que percebemos a realidade) de nós mesmos. Mais talentoso com as palavras, Fernando Pessoa abordaria esse fenômeno da seguinte forma:

Como é por dentro outra pessoa
Quem é que o saberá sonhar?
A alma de outrem é outro universo
Com que não há comunicação possível,
Com que não há verdadeiro entendimento.

Nada sabemos da alma
Senão da nossa;
As dos outros são olhares,
São gestos, são palavras,
Com a suposição de qualquer semelhança
No fundo.



Noves fora, zero: insistir na realidade – do regime único de percepção, para ser enfático – não passa de mero preconceito retórico. Por tabela, comunicar é tentar tornar comum. Aproximar ao máximo. Mas a tentativa é em parte frustrada, porque ninguém é capaz de sentir de forma genuína as motivações do comunicador ao se expressar. O contato se dá com a representação – uma imagem, uma fala, um texto, uma música – e não com o sentimento, a essência. Todo esse passeio, à primeira vista um tanto distante da discussão propriamente dita, serve para fundamentar que, no fim das contas, cada um é cada um. E, se a comunicação de fato permite mudar alguém, como levanta o professor Bordenave, é só a si mesmo (o que não quer dizer que apenas uma pessoa possa ser transformada em um processo comunicativo). Bingo.

Não há elemento argumentativo forte o suficiente para tornar ilegítima a divulgação de “irrelevâncias” na grande rede. Quem for dono da própria vida que faça o que quiser com ela. O resto é intrometimento. Até porque nem só disso vive a internet: cada qual com seu nicho. A única ressalva a ser feita é quando esse comportamento expositivo interfere em terceiros. Um exemplo claro (de outros possíveis) é dos restaurantes pouco afeitos à propaganda popular que se sentem incomodados quando os cliques, que antecedem as curtidas no instagram, atrapalham a liturgia do local. Nesse caso, por se tratar de um estabelecimento privado, com suas próprias regras e concepções, os clientes devem se adequar. Ou não consumir. Ponto.

Em suma, não é possível mensurar precisamente o que leva alguém a se expor, a não ser quando essa análise é feita pela própria pessoa – e olhe lá. De toda forma, as redes sociais permitem interromper os feeds de notícias, filtrando atualizações indesejadas. Aos incomodados, nos quais não me incluo, a opção de bloquear será sempre serventia da casa.