a
Luiz Humberto e Nelsinho
Deu
a hora: minhas pálpebras maldiziam as lâminas de sol que atravessavam sem
esforço a persiana remendada. Sempre adivinho o pior lugar da cama para desabar
no sono e agora toda aquela luz já havia me furado a cabeça. Por impulso natural,
apertei ainda mais os olhos. A boca-semiárido, a saliva dura na ponta do lábio,
reclamava água de um jeito estúpido, quase tímido, quase ordem, que só quem já
tomou alguns porres de uísque sabe como é.
Quando
resolvi me levantar, por pouco não fui de encontro ao chão. O pé direito,
de inchado, mais parecia um anfíbio fora de catálogo; corte alongando-se do quarto
dedo à base do calcanhar. Bem feio,
avalio, mas não aparenta ser muito profundo – menos mau. Porra, essa casa está
uma zona, cadê a minha roupa?! Desde que a cintura não consegue acompanhar o
cós ando perdendo as peças pela sala. Pelo menos para isto serviu o pé: esquecer
a dor de cabeça. Avisto um pano sujo, manchas escuras e vermelhas; sequer me lembro de o ter usado para estancar o sangue.
O calcanhar ajudou a vencer os
passos até o banheiro com certa facilidade, embora se esquivar de garrafas vazias e maços de cigarro amassados não seja propriamente uma
diversão. Preciso lavar esse corte, urgente. Tentei mover a válvula da pia no
sentido anti-horário. Não adiantou. Fiz o contrário, a resposta foi um
suspiro grotesco. Seco. Acho que cortaram a água nesta manhã, não tenho
certeza. Mais tarde penso em como buscar um pouco lá no ribeirão – recôndito
menino de pesca, onde gastava meus finais de semana com os primos –, quem sabe assim também
molho o cabelo – o balde, salvo engano, reza o sono dos justos no azulejo frio
da despensa. Depois eu vejo se continua lá. Com sorte, aproveito ainda para comprar gasolina no caminho e vê
se aquela lata velha volta à vida.
Nessa casa não há espelhos, ninguém
explica como cabia tanta gente aqui. Tenho que sair dessa: até quando meu
dinheiro duraria no turismo predatório de lesbos, as franjas douradas de praia?!
Especulei duas semanas. Depois foi só eu ter passado uns dias com o abreu, transferido
pela agência para o amapá, lembram?! Não quis incomodar com correspondências,
as conexões são sempre ruins, vocês sabem, as tarifas desumanas. Claro que não
lembram, mas acreditam. Por que não? Aqui na sala parece noite, o relógio de
parede marca 4h17, mas furtei-lhe as pilhas assim que cheguei. Dormiram acesas
as luzes, bom que não cortaram ainda. A vitrola, modelo setecentos e três,
tocando um chiado fim de disco, deve ter passado a noite ligada. Na verdade,
recavei um sinatra no depósito em meio a toneladas de desprezo. Desde então,
acompanho learnin’ the blues ao piano
vertical e afinado, dizem ter sido da minha bisavó. Morreu por complicações de
bronquite, mamãe jovem. The tables are
empty, the dance floor’s deserted. É desafiador tocar blues com o fá
sustenido quebrado. The cigarrettes you
light, one after another. O que não compromete o fato de ter sido a única
coisa aproveitável nessa casa – afora o estéreo e o disco, claro. When you feel your
heart break, you’re learnin’ the blues.
Minha
preferência desde cedo, quanto mais instrumental melhor. O piano, a guitarra, o
trompete cantam em linguagem universal. Aprendi a ouvir choro com ela, música
de morro, música de gente de verdade, defendia. Cheguei a achar palatável, mas
a cafonice comprometia o conjunto. Vindo de rico ou de pobre, meu coração, não sei por que, bate feliz
quando te vê é literariamente equivalente a batatinha quando nasce se esparrama
pelo chão. Corruptela, sempre digo, o correto é espalha a rama. Quem esparrama é uísque. O copo, não: estilhaça. Despencou
durante a dança que continuei dançando. Eu, esnobe; ela, altruísta, dez anos
mais nova. Eu com ela; ela sem mim. Nada restou daquilo, apenas o lenço turco,
seda pura, rendinha bordada à mão, que usou por meses e meses. Guardei na
gaveta de casa antes de ir embora sem deixar ninguém se despedir de mim.
Estacionei
o santana noventa e quatro na esquina da praça, a poucos metros da saída de um colégio qualquer. Aguentou
uma centena e meia de quilômetros sem reclamar. Não removi da ignição a chave.
Lanço a cabeça para trás, pelos da nuca eriçados. Conferi as janelas fechadas,
acendo o primeiro cigarro com a mão direita, enquanto a esquerda se ocupa do
resto. Até quando vão se esquecer de trocar essa película carcomida?! Iam
saindo uma a uma. Meninotas empinadas de saias jeans abaixo do joelho e camisa de poliéster ordinário, lançando-me ao desafio de adivinhar-lhes o desenho dos
sutiãs. Os peitinhos pubescentes, como mandacarus aflorando na seca, diria
gonzaga, ganhando a rua esquecidos da fome. Procurei um olhar semelhante que
fosse. A diferença é que naquelas não cairiam bem vestidos longos, möet-chandon, valsas à meia-noite. Ar-condicionado
quebrado, mormaço absurdo, alguém podia me ver através da fumaça?! Foda-se.
Ainda que movesse uma multidão a plateia, as tomaria em pé ali mesmo, sob o
pretexto de pôr-lhes ordem, já redimido do pecado. E riam, incontidas e
nervosas: te mando a conversa; por favor não conte nada a ninguém; qualquer
coisa pode dizer que estava lá em casa. Assim não, querida. Não me deixe tão facilmente,
trancado nesse carro velho, dedos cerrados, tentando acomodar-me sob o tapete mofado.
Acendo
o primeiro cigarro. O silêncio absoluto – nossa casa de campo sempre foi um reduto sem vizinhos –,
possibilita-me escutar o crepitar do fumo. Exemplar operário o fogo, calcinando
anéis de carbono em esculturas de escombros. Eduquei-me a fumar sem me desfazer
das cinzas, porque precisam cair sozinhas. Certa vez, vi-as manter-se quase até
o filtro. Era secundarista, nem suspeitava do palato inflamado. Mamãe reclama a
toda hora. Meu pai, tabagista irredutível, não resistiu à primeira trombose
coronária. Acendo o segundo, o terceiro; o quarto manchado de sangue. Um
escroto, o velho. Mandou-se a estudar os apinayé, às margens do araguaia – eles
aferem a temporalidade por referências a parentes mais velhos; não há uma
medida orgânica do tempo, entendeu, garoto? Eu dizia que sim, pouco importava. Tempo era
o que ele perdia demais com as alunas, enquanto mamãe cuidava das avencas, do
açúcar para as formigas e do meu irmão. Não me lembro de tê-los visto trocando
uma sílaba acima do tom. Ela nunca fez amigos. Ainda hoje serve a mesa com
quatro pratos.
Se
davam bem as duas, por mais improvável que seja. Mamãe não é do tipo que se
compra com simpatia, sou capaz de apostar que foi por ela ter ajudado a aprontar
bolo de noiva e lolitas para o natal do condomínio. Me dá nos nervos essa
impaciência de sinatra esperando meu primeiro acorde. Celebridade é sempre
prepotente. É verdade, desde aquele natal fazia vista grossa para as muitas ideias, a
camisa folgada, orelha sem brinco. Ela tinha fome de beauvoir e chegou até a
envolver-se com o movimento estudantil. Uísque direto da garrafa, os vidros restaram
sobre o carpete. Ela não cansava de repetir que não sei quem dizia que o
suicídio é a única questão filosófica verdadeiramente séria. Você não foi
séria, meu bem.
Quer
saber, saudade – também choram os galegos e os árabes, povos de incansável
fraqueza – é palavra maldita, abomino tanto quanto os congressos de literatura
regional. Saram rápido as feridas do sapo: já posso até limpar esse pano imundo
no meu pé. Casamento marcado para julho, mês de imperador. Tudo ok com o capelão, convites aromatizados, buffet, conceito minimalista,
essas modinhas gastronômicas, caralho a quatro. O sorriso piegas, porque
sempre, encantava-me, porque desconhecidos os destinos a que nos reserva.
O quão melhor seria se você sofresse – me traria mais força. Quem sabe me
permitisse até sentir um pouco de pena: o mínimo de pena que pessoas
socialmente saudáveis são capazes de se fazer sentir. Você, não. Muito
corajosa, podia aguentar sempre sorrindo. Eu abandonei sant’anna na estrada – e
ela não voltou em três dias. Aquela droga de sorriso, um oceano inteiro,
arruinava tudo! Sempre nauseantemente maior que os problemas, maior que o mundo.
The tables are empty, the dance floor’s deserted.
Foram incontáveis jantares sem sal, até o mielograma finalmente indicar a ausência
completa de linfoblastos. The cigarrettes
you light, one after another. E ela durou apenas dois meses. Lembra-se do
primeiro médico ter dito que era uma apendicite?! When you feel your heart break, you’re
learnin’ the blues. As
gardênias substituíram o véu sem grandes prejuízos estéticos, devo admitir,
ainda que fosse uma péssima escolha. Vai agradecer ao quê, filha da puta?!
Avisei à família para não lhe dar ouvidos. Responderam que era desejo, não há o
que fazer. Desejo?! E quem pode escolher o quê nessa vida?
No
fim das contas, você desistiu na hora errada. Desculpa, você sabe como eu fico
quando bebo. Uma rosa é uma rosa é uma rosa, não adianta, amor, tem razão. A
garganta arde, aqui escurece muito cedo. Arrependo-me de não ter trazido comigo
o lencinho. Faltou coragem de queimá-lo junto às fotografias, sabe?! Restam
três garrafas, depois não sei o que acontece. Nunca mais – ouça bem –, nunca
mais o solto por nada, nada, nada. E não sou de esquecer nenhuma promessa,
viu?! A dedicatória aos nossos filhos, uma menina e um menino: como combinamos
que seria.